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A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA COMO SUBSÍDIO PARA ESCOLHER ETICAMENTE CANDIDATOS E PROGRAMAS POLÍTICOS.

          Thierry Linard de Guertechin s.j.[2]

O objetivo deste texto consiste em fornecer critérios ético-políticos para as eleições de outubro de 2018, à luz de alguns grandes princípios da Doutrina Social da Igreja. A participação na vida política não é só um direito, mas um dever de cidadania para garantir a permanência da democracia. “Toda democracia deve ser participativa” (CA 46). Isso significa para as pessoas e comunidades um direto-dever de serem informadas, ouvidas e envolvidas no processo eleitoral. Daí a exigência e necessidade de um voto consciente que toma em consideração as consequências para a vida e o bem de todos os brasileiros e brasileiras, ou seja, o BEM COMUM. A busca da realização do bem comum é um critério que permite e incentiva a escolher candidatos e partidos políticos que nos seus programas constam uma determinação de implementar políticas (públicas) que garantam esse bem comum.

1º PRINCÍPIO: “da prioridade do TRABALHO em confronto com o CAPITAL” (LE, 12) no conflito atualizado com as políticas neoliberais.

Na RERUM NOVARUM, em 1891, o papa Leão XIII reconhece a existência de um temível conflito: “a afluência da riqueza nas mãos de um pequeno número, ao lado da indigência da multidão…”(1). “É necessário, com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores, atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida” (3).

Na LABOREM   EXERCENS, em 1981, João Paulo II estabelece “o princípio da prioridade do trabalho em confronto com o capital (12,1), princípio que é “uma verdade evidente que resulta de toda a experiência histórica do homem” (12,1). “O trabalho é sempre uma causa eficiente primária, enquanto que o “capital, sendo o conjunto dos meios de produção, permanece sempre um instrumento, ou causa instrumental” (12,1)

Assim o papa fundamenta a dignidade do trabalho, expressão da primazia do homem sobre as coisas. Mas esta dignidade ficou danificada nos processos de industrialização. Já na QUADRAGESIMO ANO, Pio XI deplorava o aviltamento dos trabalhadores nas fabricas: “da oficina só a matéria sai enobrecida; os homens, ao contrário, corrompem-se e aviltam-se” (135).

Voltando ao Brasil, o país está socialmente regredindo a mais pobreza e desigualdade social. Voltou ao mapa da fome. Desemprego e subemprego de dezenas de milhões cresceram demais. A implantação da Reforma trabalhista e da terceirização generalizada do trabalho, tanto para as atividades meios como as afins, legalizada de vez pelo Supremo Tribunal Federal – STF, fragiliza os trabalhadores, beneficiando os donos do capital.

“Qual é o significado da palavra « digna » aplicada ao trabalho? Significa um trabalho que, em cada sociedade, seja a expressão da dignidade essencial de todo o homem e mulher: um trabalho escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua comunidade; um trabalho que, deste modo, permita aos trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação; um trabalho que consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade aos filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar; um trabalho que permita aos trabalhadores organizarem-se livremente e fazerem ouvir a sua voz; um trabalho que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes a nível pessoal familiar e espiritual; um trabalho que assegure aos trabalhadores aposentados uma condição decorosa”( Bento XVI, Caritas in veritate, 63).

2º PRINCÍPIO: determinação firme e perseverante de trabalhar pelo BEM COMUM; quer dizer pelo bem de todos e de cada um porque todos somos responsáveis de todos (ver João Paulo II, Solicitudo rei socialis, 38).

“Cada um deve pois ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social. Hoje porém, à vista do contraste estridente, que há entre o pequeno número dos ultra-ricos e a multidão inumerável dos pobres, não há homem prudente, que não reconheça os gravíssimos inconvenientes da atual repartição da riqueza” (Quadragesimo Anno, 58).

O BEM COMUM aparece assim como princípio regulador das justas relações entre o trabalho e o capital. Infelizmente, este programa aqui esboçado não está se realizando, e mesmo se realiza cada vez menos. Em Centesimus annus, João Paulo II pergunta-se, com a falência do comunismo, se é o sistema capitalista que se deve propor aos Países do Terceiro Mundo que procuram a estrada do verdadeiro progresso econômico e civil? (CA, 42).

Mas temos que constatar que os fenômenos de exploração e alienação humana subsistem e até aumentam com a evolução ultraliberal vigente.

“Existe até o risco de se difundir uma ideologia radical de tipo capitalista, que se recusa mesmo a tomá-los (esses problemas) em conta, considerando a priori condenada ao fracasso toda a tentativa de os encarar e confia fideisticamente a sua solução ao livre desenvolvimento das forças de mercado” (CA 42).

Vinte dois anos mais tarde, na sua exortação programática Evangelli gaudium, o papa Francisco diz ‘não’ a uma economia da exclusão e da disparidade social, denunciando o sofismo neoliberal responsável dessa subversão do BEM COMUM.

“Neste contexto, alguns defendem ainda as teorias da ‘recaída favorável’, que pressupõem que todo o crescimento econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue por si mesmo produzir maior equidade e inclusão social no mundo. Esta opinião, que nunca foi confirmada pelos fatos, exprime uma confiança vaga e ingênua na bondade daqueles que detêm o poder econômico e nos mecanismos sacralizados do sistema econômica reinante” (EG 54).

Uma justa gestão do BEM COMUM exige um bom funcionamento da sociedade e do Estado. “Tal desequilíbrio (do sistema econômica reinante) provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum” (EG 56)

Emblemático deste desequilíbrio, é o processo de transferência de renda do Estado brasileiro para setores privilegiados por meio de isenções de impostos, de renúncias, de perdão de dívidas e do custo, em boa parte abusiva, da dívida pública. O tributo que o governo deixa de arrecadar com as renúncias é a Cofins, um montante de R$ 68 bilhões. Na contribuição para a Previdência social, a renúncia será, em 2019, de R$ 64 bilhões. No imposto de Renda da Pessoa Física e Jurídica, as renúncias chegarão a R$ 52,4 e 49,3 bilhões respectivamente[3]. O povo sofre com as consequências da crise econômica, social e política, entretanto os bancos estão com lucros que superam o valor do “Bolsa-família” – que atenderia 39 milhões de famílias beneficiadas. “O povo vai mal. O mercado (financeiro) vai bem”.

Trata-se de uma verdadeira sangria de recursos ora destinados à prestação de serviços e benefícios aos cidadãos em geral e principalmente aos mais pobres. Neste ano eleitoral em que se fala tanto em acertar as contas públicas, esse sequestro de recursos sociais pelos donos da riqueza financeira e/ou pelos sonegadores de recursos tem que vir à luz, por agredir e ferir o bem comum.

3º PRINCÍPIO:  o papel do Estado.

Segundo Pio XI, em 1937, na encíclica Divini Redemptoris, “a doutrina católica confere aos governantes tanta dignidade e autoridade, quanta é necessária para que eles com vigilante e previdente solicitude salvaguardem os direitos divinos e humanos, que as Sagradas Escrituras e os Padres da Igreja tanto inculcam” (DR 33). O Estado está a serviço do Bem Comum. Isso significa que se trata de um direito e dever do Estado interferir em favor dos trabalhadores.

“Os direitos devem ser rigorosamente respeitados e o Estado deve assegurá-los a todos os cidadãos, prevenindo ou vingando sua violação. Todavia, na proteção dos direitos particulares, deve-se preocupar, de maneira especial, com os fracos e indigentes […] com a proteção do Estado” (RN 54). A Rerum novarum enumera algumas aplicações deste princípio na vida econômica. Na encíclica Mater et Magistra, João XXIII retoma afirmações dos papas anteriores para sublinhar que a finalidade do Estado consiste em realizar o bem comum e interessar-se com os problemas econômicas (ver MM 20).

Hoje, para a atividade econômica, enfrentam-se dois caminhos distintos. Nos programas dos partidos, quando têm, essas duas posturas aparecem pouco explícitos, mas têm importâncias na vida da sociedade. A postura liberal da direita defende a livre iniciativa e o Estado mínimo. A “mão invisível” do mercado cria as condições de equilíbrio necessárias para o desenvolvimento. Ao Estado fica o domínio da saúde, educação e segurança. O neoliberalismo dispensa o Estado da sua responsabilidade no campo da saúde e educação. Não é sem significação a política vigente que desmonta o SUS pela privatização da saúde e da previdência social. O próprio governo atual com a aprovação pela maioria dos deputados e senadores cortou drasticamente os gastos primários e sociais pela famosa “PEC do Teto”, criticada em nota pela CNBB.

Nos programas de partidos das chamadas esquerdas, consta a importância do Estado para impulsionar a atividade econômica com progresso social. O Estado garante o bem-estar-social. Isso explica a importância e o sucesso do programa do “Bolsa Família” que, hoje, deve ter um impacto eleitoral. Os programas das esquerdas são em favor da revogação da “PEC do Teto”, com condição de construir um Estado social. As esquerdas não acreditam na auto-regulação dos mercados para contribuir ao bem comum.

Se a afirmação da responsabilidade do Estado no campo econômico é um aporte decisivo da encíclica Rerum novarum, não é papel do Estado determinar o que é o bem comum, nem definir e fundar os direitos. A comunidade política cujo o Estado é responsável não é uma massa de indivíduos. O Estado tem que tomar em conta a existência dos ‘corpos intermediários’ que, com suas autonomias respectivas, buscam e agem em favor do bem comum. Na sua primeira encíclica, Redemptor hominis, João Paulo II estabelece os direitos humanos como objetivos e invioláveis, exigindo dos Estados uma rigorosa observância desses direitos.

“O sentido essencial do Estado, como comunidade política, consiste nisto: que a sociedade e, quem a compõe, o povo é soberano do próprio destino. Um tal sentido não se torna uma realidade, se, em lugar do exercício do poder com a participação moral da sociedade ou do povo tivermos de assistir à imposição do poder por parte de um determinado grupo a todos os outros membros da mesma sociedade” (RH, 17).

Num regime democrático, os partidos são chamados a acolher as aspirações da sociedade civil, orientando-as para o bem comum e oferecendo aos cidadãos uma possiblidade real de participar à formulação de opções políticas (Ver Gaudium et Spes, 75). Uma informação objetiva é necessária para garantir o jogo democrático. O papa João XXIII citava como um dos obstáculos que se opõe à realização do direto à informação objetiva, as concentrações editoriais e televisais com seus perigosos efeitos para o regime democrático. É o caso (nosso) quando existem laços estreitos entre a gestão governamental, os poderes financeiros e o monopólio ou oligopólio da informação (ver Compêndio da Doutrina Social da Igreja 414).

4º PRINCÍPIO: Por uma ecologia e vida humana integral

“Aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas que necessitam para levar uma vida verdadeira humana: alimentos, vestuário, casa /…/ direito à educação, ao trabalho /…/ ao respeito, à conveniente informação /…/ direito à proteção da sua vida…” (GS 26). Para o papa Francisco, a ecologia humana é inseparável do bem comum que pressupõe o respeito pela pessoa humana com direitos fundamentais e inalienáveis orientados para seu desenvolvimento integral (ver LS’ 156-157).

Diante opções legislativas e políticas contrárias aos princípios e aos valores cristãos, o Magistério ensina que “a consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer, com o próprio voto, a atuação de um programa político ou de uma só lei, em que os conteúdos fundamentais da fé e da moral sejam subvertidos com a apresentação de propostas alternativas ou contrárias aos mesmos” (NOTA doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política da Congregação para a Doutrina da Fé, 4).

“O direito à vida é incondicional. Deve ser respeitado e defendido, em qualquer etapa ou condição em que se encontre a pessoa humana. O direito à vida permanece, na sua totalidade, para o idoso fragilizado, para o doente em fase terminal, para a pessoa com deficiência, para a criança que acaba de nascer e também para aquela que ainda não nasceu. Na realidade, desde quando o óvulo é fecundado, encontra-se inaugurada uma nova vida, que não é nem a do pai, nem a da mãe, mas a de um novo ser humano. Contém em si a singularidade e o dinamismo da pessoa humana: um ser que recebe a tarefa de vir-a-ser. Ele não viria jamais a tornar-se humano, se não o fosse desde início. Esta verdade é de caráter antropológico, ético e científico. Não se restringe à argumentação de cunho teológico ou religioso.” (CNBB, Pela Vida, Contra o Aborto, 2017).

Mas, também, na Encíclica Evangelium vitae, João Paulo II ensina que “um parlamentar, cuja pessoal oposição absoluta ao aborto seja clara e por todos conhecida, possa licitamente dar o próprio apoio a propostas tendentes a limitar e a diminuir os seus efeitos negativos no plano da cultura e da moralidade pública” (EV 73). Isso significa que não se pode se colocar sempre numa atitude do “tudo ou nada”. “Uma maneira de pensar absoluta tende a fazer absoluta aquela que que lhe é oposta, mesmo se está última não o é em si mesmo. Uma mentalidade de combate procurará por princípio o adversário e o achará em toda parte, o despertará ou mesmo o criará de toutes pièces[4].

Hoje, com a desagregação de valores éticos e políticos que se reflete na sociedade e na Igreja, observa-se maniqueísmos, ódio e rancor que dividem os cristãos. O caso do aborto no campo da política é emblemático de posturas absolutizantes para não dizer totalitárias. Já, no passado, apareceu nas campanhas eleitorais uma polarização entre uma intransigência doutrinal do tudo ou nada e uma atitude pastoral aberta ao diálogo com a sociedade em vista de um mal menor. A absolutização do aborto como único critério para (des)qualificar candidatos instrumentalizando o votos dos católicos, é abusivo, pois negligencia e relativiza a implementação do bem comum, isolando um só dos conteúdos da fé e moral cristã em detrimento da totalidade da doutrina católica. “Não basta o empenho político em favor de um aspecto isolado da doutrina social da Igreja, para esgotar a responsabilidade pelo bem comum” (NOTA 4). Para a exortação apostólica Gaudete et exultate, o direito a nascer deve ser sem equivoco, porque está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada. Igualmente sagrada é a vida dos pobres já nascidos que se debatam na miséria.[5]  

Ficar na afirmação dos princípios da Doutrina Social da Igreja pode dar satisfação aos detentores da verdade, mas revela uma intransigência que, concretamente, impede e desautoriza a procura do bem comum no contexto de uma sociedade plural. O Concílio Vaticano II, na sua sabedoria, lembrava que “a ninguém é permitido, em tais casos, invocar exclusivamente em favor da própria opinião a autoridade da Igreja” (GS 43).

Em 2004, num breve documento em resposta a alguns anseios dos bispos norte-americanos, o então Cardeal Ratzinger notou: “um católico seria culpado de cooperação formal com o mal, e seria então indigno de receber a santa comunhão no caso de votar deliberadamente por um candidato precisamente em razão da postura permissiva dele sobre o aborto e/ou a eutanásia. Quando um católico não partilha a posição de um candidato em favor do aborto e/ou da eutanásia, mas vota por esses candidato por outra razões, considera-se este ato como cooperação material remota, permitido em virtude de razões proporcionais”[6]

Nas condições atuais da sociedade com tantas desigualdades e pessoas desalentadas, o princípio do bem comum torna-se um apelo à solidariedade e uma opção evangélica pelos mais pobres. “Basta observar a realidade para compreender que, hoje, esta opção é uma exigência ética fundamental para a efetiva realização do bem comum” (LS’ 158).

[1] Texto revisado pelo autor apresentado no Conselho Episcopal Pastoral (CONSEP) da CNBB, na terça-feira 18 de setembro de 2018.

[2] Membro do Observatório de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA, no Centro Cultural de Brasília – CCB.

[3] Ver artigo do jornal O Estado de São Paulo do 6 de setembro de 2018 assinado por Adriana Fernandes e Lorenna Rodrigues.

[4] Romano Guarini, Pascal ou le drame de la conscience chrétienne, Seuil, 1951, p.213, citado por Paul Valadier, Rigorisme contre liberte morale, Lessius, Bruxelles, 2013, p. 103.

[5] “Mas é nocivo e ideológico também o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo de superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista; ou então relativizam-no como se houvesse outras coisas mais importantes, como se interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles defendem. A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte.[84] Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente” (GE 101).

[6] Ver La Documentation catholique, 2322, 17 de outubro de 2004.

Fonte CNBB