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A Laicidade numa Igreja Latinoamericana e Caribenha comprometida com a construção da Justiça

A Laicidade numa Igreja Latinoamericana e Caribenha comprometida com a construção da Justiça

 

Paulo Fernando Carneiro de Andrade

 

O compromisso com a construção da Justiça não pode ser compreendido como uma opção acessória para a Igreja. Trata-se de uma dimensão inerente à Missão por ela recebida. De modo particular a Igreja Latinoamericana e Caribenha tem construído ao longo dos últimos 40 anos uma Tradição própria de firme compromisso com a causa da justiça, traduzida em uma vigorosa ação pastoral e no testemunho de tantos cristãos, leigos e leigas, religiosas, padres e bispos que sofreram perseguição, violência e martírio por causa de suas posições e lutas em favor da justiça.

 

Cabe aqui aprofundar o significado que a Igreja Latinoamericana e Caribenha, em Comunhão com a Igreja Universal, tem dado ao conceito de justiça, e à relação entre a ação pastoral, o agir político e construção da justiça. O papa Bento XVI, em sua Encíclica “Deus Caritas Est”, afirma: “A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política… A justiça é o objetivo e, conseqüentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão: como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical: o que é a justiça?” (DCE 28).

 

Igreja e Estado têm diferentes finalidades, segundo as duas distintas ordens a que pertencem. Na história estão sempre presentes dois riscos. O primeiro é o do monismo, que reduz seja o temporal ao espiritual, seja o espiritual ao temporal. O segundo risco é o de transformar essa dualidade em dualismo, construindo um paralelismo entre as duas ordens, de tal modo que o espiritual e o temporal encontram-se não apenas distintos, mas totalmente separados e mesmo em oposição. Salvaguardando a dualidade, de um lado deve-se reconhecer a autonomia da ordem temporal (consagrada no Concílio Vaticano II como “autonomia das realidades terrestres”, GS 36), e de outro, o papel salvífico que a ordem espiritual tem em relação à realidade terrestre. O Concílio Vaticano II afirma que a Igreja, “Sacramento Universal da Salvação” coloca-se a serviço da salvação da humanidade e da recapitulação de todas as coisas em Cristo (GS 45a). A Boa Nova, o anúncio do Reino de Deus, diz respeito não só aos homens e às mulheres, mas a todo o criado, pois “O Senhor é o fim da história humana, ponto para o qual convergem as aspirações da história e da civilização, centro da humanidade, alegria de todos os corações e plenitude de todos os seu desejos” (GS 45b). Nessa perspectiva, salvaguardando a distinção entre as duas ordens e a autonomia da ordem temporal, e por isso a diferença fundamental entre Igreja e Estado, afirma-se ao mesmo tempo a existência de uma relação entre as duas ordens, na qual a Igreja atua no mundo não só como oferta de salvação às pessoas, mas também à história humana. Conforme afirma o Concílio, em decorrência de sua missão salvífica, “A Igreja, sem dúvida alicerçada no amor do Redentor, contribui para que a justiça e a caridade floresçam mais amplamente no seio de cada nação e entre as nações” (GS 76). Essa ação em favor da justiça e da caridade tem não apenas uma dimensão ética, mas também escatológica: “Por isso, ainda que o progresso terreno deva ser cuidadosamente distinguindo do reino  de Cristo, contudo é de grande interesse para o Reino de Deus, na medida em que pode contribuir para organizar a história humana….O Reino já está presente em mistério aqui na Terra. Chegando o Senhor ele se consumará”.  GS 39). A ação pastoral em prol da justiça é própria da Comunidade Eclesial como um todo, em não apenas responsabilidade de apenas alguns de seus membros.

 

Deve-se ainda ter presente que para a Doutrina Social da Igreja, após a promulgação da Encíclica Pacem in Terris de João XXIII, em 1963, justiça significa antes de tudo o respeito e a promoção dos Direitos Humanos. Esta Encíclica marca a recepção por parte da Igreja Católica de uma nova concepção do ordenamento jurídico-social e do conceito de justiça. Trata-se da assunção por parte do Ensino Social da Igreja do paradigma dos Direitos Humanos.  Embora a doutrina dos Direitos Humanos tenha, de certa forma, sua origem no Cristianismo, em sua ética, e na concepção de pessoa humana da qual é portador, houve por parte da Igreja Católica, e das Igrejas Cristãs em geral, forte relutância em aceitar sua formulação. Essa dificuldade liga-se em grande parte ao modo e ao contexto como surgiu inicialmente a concepção formal filosófica dos Direitos Humanos, ligado ao iluminismo freqüentemente agnóstico ou ateu e anticlerical. A grande dificuldade, comum a todas as Igrejas Cristãs nesse contexto era, de um lado aceitar a mudança de paradigma jurídico, passando de uma concepção político-jurídica que tem como ponto de partida a proteção do corpo social da desagregação que pode ser promovida por alguns de seus membros, e por isso centra-se nos deveres e obrigações, a outro paradigma que visa a proteger o indivíduo contra o abuso de outros indivíduos e do Estado. Nesse novo paradigma a Sociedade e o Estado não são mais entendidos como um Corpo Orgânico e harmônico, mas como uma Sociedade de indivíduos que possuem uma igualdade primordial, anterior à constituição da sociedade mesma e são fonte de direitos universais, invioláveis e inalienáveis. Sendo essa Sociedade formada para benefício de todos os indivíduos, deve ser regulada por um contrato social que não pode subtrair aos sujeitos seus direitos fundamentais. Esses direitos devem por sua vez constituir a pedra angular do ordenamento jurídico.

 

Nos anos 60, conforme afirmado, coube ao Papa João XXIII estabelecer, na Encíclica Pacem in Terris, uma verdadeira recepção católica do paradigma dos Direitos Humanos. Nos parágrafos iniciais da primeira parte da Encíclica Pacem in Terris, o Papa afirma: “Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa; isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis.” (PT, I Parte). Entre os direitos principais listados pelo Papa João XXIII, encontram-se em primeiro lugar o “direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida”, o que inclui também o direito de ser amparado na doença, na velhice, assim como na viuvez, na invalidez e em caso de desemprego forçado. O Papa também afirma a existência de direitos morais e culturais que incluem o direito à liberdade de pensar e expressar o pensamento e a receber informações verídicas sobre acontecimentos públicos, bem como o direito à educação e à formação técnica e profissional. Afirma-se também nessa Encíclica o direito à liberdade religiosa e à escolha do estado de vida. Outro campo de direitos é constituído pelos direitos econômicos, civis e políticos que incluem o direito ao trabalho e à justa remuneração, o direito de participar ativamente da vida pública, o direito de reunião e associação, assim como o direito de emigração e imigração. O conjunto de Direitos afirmados nessa Encíclica ultrapassa os constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, sobretudo pela ênfase dada aos direitos sociais e econômicos, assim como se distingue da visão liberal dos Direitos Humanos ao integrar os direitos individuais aos sociais, a partir do princípio da responsabilidade social e do dever de solidariedade que liga as pessoas humanas.

 

A partir da Pacem in Terris, pode-se dizer que no Ensinamento Social Cristão quando se afirma que “A justa ordem da sociedade e do Estado é dever central da política”(DCE 28), por justa ordem entende-se um ordenamento jurídico que tem como paradigma os Direitos humanos, compreendido como um conjunto de direitos individuais e sociais, que se fundam na dignidade da pessoa humana. O Estado tem como função primordial a promoção e a defesa e a promoção desses direitos.

 

O Concílio Vaticano II trouxe um novo vigor para a Igreja na América Latina e no Caribe. No caso brasileiro, desde meados dos anos 60 desenvolveu-se entre nós uma intensa atividade pastoral que, se de um lado era herdeira de ricas experiências que vinham ocorrendo desde anos anteriores, entre as quais deve ser destacada a Ação Católica Especializada, de outro, assumia novos rumos, sobretudo em meios populares. A Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano em Medellín (1968), que teve como tema “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio”, constitui-se simultaneamente em ponto de confluência dessas experiências e em um estímulo para o desenvolvimento de uma nova pastoral.

 

A pastoral Social e Política que se desenvolveu, nesse contexto, desde os anos 60 em nosso Continente, foi profundamente marcada pelo Espírito Conciliar e, em suas grandes linhas, encontra-se configurada a partir dos mesmos paradigmas que foram assumidos pelo Papa Paulo VI na Carta Apostólica Octogesima Advenien, de modo especial em seu parágrafo quarto onde se lê:

Perante situações, assim tão diversificadas, torna-se-nos difícil tanto o pronunciar uma palavra única, como o propor uma solução que tenha um valor universal. Mas, isso não é ambição nossa, nem mesmo a nossa missão. É às comunidades cristãs que cabe analisar, com objetividade, a situação própria do seu país e procurar iluminá-la, com a luz das palavras inalteráveis do Evangelho; a elas cumpre, haurir princípios de reflexão, normas para julgar e diretrizes para a ação, na doutrina social da Igreja, tal como ela vem sendo elaborada, no decurso da história, e, especialmente, nesta era industrial, a partir da data histórica da mensagem de Leão XIII sobre “a condição dos operários”, da qual nós temos a honra e a alegria de celebrar hoje o aniversário. A essas comunidades cristãs incumbe discernir, com a ajuda do Espírito Santo em comunhão com os bispos responsáveis e em diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade – as opções e os compromissos que convém tomar, para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se apresentam como necessárias e urgentes, em não poucos casos. Nesta procura diligente das mudanças a promover, os cristãos deverão, antes de mais nada, renovar a sua confiança na força e na originalidade das exigências evangélicas. O Evangelho, de fato, não está ultrapassado, pela circunstância de ter sido anunciado, escrito e vivido, num contexto sócio-cultural diferente. A sua inspiração, enriquecida pela experiência vivente da tradição cristã, ao longo dos séculos, permanece sempre nova, em ordem à conversão dos homens e ao progresso da vida em sociedade, sem que por isso, se possa chegar a utilizá-la em favor de opções temporais particulares, esquecendo a sua mensagem universal e eterna (Cf CONC. ΟΕCUM. VATIC. II, Const. Past. Gaudium et Spes, 10: AAS 58 (1966), p. 1033)

(Octogesima Adveniens  4)

 

Na grande Tradição da Igreja Latinoamericana e Caribenha a Comunidade Cristã, como sujeito eclesial, tem assumido a responsabilidade de discernir sobre a realidade e estabelecer as opções e compromissos concretos que devem ser realizados no campo político e social, para realizar as transformações sociais, políticas e econômicas que se apresentam como necessárias e urgentes” em seu contexto. No processo de discernimento a Comunidade Cristã, de um modo geral, tem utilizado o método “ver, julgar e agir”, onde o Evangelho tem papel preponderante. Os Círculos Bíblicos nos meios populares e nas Comunidades Eclesiais de Base têm possibilitado que as Sagradas Escrituras assumam grande importância na tarefa de discernimento, cumprindo a função de iluminar a realidade. Das Escrituras e do Ensinamento Social Cristão a Comunidade hauriu a norma fundamental da “opção preferencial pelos pobres”. No contexto latino-americano essa opção implica, , o duplo movimento de, por um lado, buscar colocar-se no lugar social do pobre, isto é, de procurar “ver o mundo como os olhos dos pobres”, identificando-se com suas necessidades, demandas, e modo próprio de compreender a vida, e de outro, criar condições para que os pobres transformem-se em sujeitos transformadores da história.

No processo de discernimento e tomada de decisões feito pela Comunidade Eclesial, a comunhão de todos os membros da Comunidade com os Bispos tem sido uma constante. Os documentos das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Medellín, Puebla e Santo Domingos atestam essa comunhão. Do mesmo modo, no caso brasileiro, os diversos documentos sociais da CNBB, ao longo dos últimos cerca de 40 anos (1966-2006) marcam essa comunhão. Poderia ainda ser lembrado nesse contexto as Campanhas da Fraternidade, as Semanas Sociais e, mais recentemente, a fundação do Centro Dom Helder Câmera no âmbito da CNBB e as diversas Escolas Diocesanas de Formação Política.

 

Note-se que esta comunhão, em conformidade com os Ensinamentos da Octogesima Adveniens, implica a superação de uma eclesiologia que reduz ao laicato a tarefa da atuação no campo social e político e, simultaneamente, o transforma em mero agente incumbido de realizar nesse campo “ordens e diretrizes” emanadas pela Hierarquia. Se “o papel da Hierarquia consiste em ensinar e interpretar autenticamente os princípios morais que hão de ser seguidos neste domínio”, cabe às Comunidades Cristãs buscar as mediações históricas que permitem passar dos princípios às opções e compromissos concretos, em seu contexto, observando simultaneamente o princípio de estar em “comunhão com os bispos responsáveis” e em “diálogo com os outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade”.

 

O diálogocom outros irmãos cristãos e com todos os homens de boa vontade” tem se traduzido no fato das Pastorais Sociais sempre atuarem no movimento sindical, nos movimentos populares ou nos partidos políticos em conjunto com as diversas forças vivas, sem pretender constituir um sindicato, partido ou movimento de identidade exclusiva. No meio rural, por exemplo, nos momentos mais críticos da década de 70 e 80 não se constituíram sindicatos católicos alternativos, mas se promoveu a conquista dos sindicatos existentes, por meios de chapas de oposição sindical, conjugando forças com os setores comprometidos com as causas populares. Nesse sentido a concepção central dessa Pastoral é a de ser fermento na massa, força catalisadora das transformações necessárias. A ação pastoral se faz em diferentes dimensões, que incluem a denúncia profética, a formação de consciências, a promoção de lideranças e o apoio efetivo à organização popular, tendo sempre presente que esse apoio tem por objetivo fortalecer o protagonismo dos agentes sociais na transformação da realidade e não o de substituí-los como sujeitos da história.

 

Na Pastoral Social percebe-se também a fidelidade ao paradigma eclesiológico da Declaração Conciliar Dignatis Humanae: De resto, deve manter-se o princípio de assegurar a liberdade integral na sociedade, segundo o qual se há de reconhecer ao homem o maior grau possível de liberdade, só restringindo esta quando e na medida em que for necessário. Nela se assume o paradigma democrático, e compreende-se a função primordial do Estado como sendo a de garantir a justiça, no sentido estabelecido pela Encíclica Pacem in Terris, isto é, cabe ao Estado antes de tudo proteger, garantir e promover os direitos sociais, econômicos, civis e políticos, sobretudo dos membros mais pobres da sociedade. A ação pastoral no campo social e político não pode ter por objetivo impor a sociedade por meio do Estado um estilo de vida próprio de um determinado grupo religioso, mas sim a consolidação da Justiça e promoção dos Direitos Humanos conforme Paulo VI afirma na Octogesima Adveniens:

A ação politica – será necessário acentuar que se trata prevalentemente de uma ação e não de uma ideologia? – deve ter como base de sustentação um esquema de sociedade, coerente nos meios concretos que escolhe e na sua inspiração, que deve alimentar-se numa concepção plena da vocação do homem e das suas diferentes expressões sociais. Não compete nem ao Estado, nem sequer aos partidos políticos, que estariam fechados sobre si mesmos, procurar impor uma ideologia, por meios que viessem a redundar em ditadura dos espíritos, a pior de todas. É sim aos grupos culturais e religiosos – salvaguardada a liberdade de adesão que eles pressupõem –  que assiste o direito de, pelas suas vias próprias e de maneira desinteressada, desenvolverem no corpo social essas convicções supremas acerca da natureza, da origem e do fim do homem e da sociedade.

Neste ponto, é oportuno recordar o princípio proclamado no recente Concílio Vaticano II: “A verdade não se impõe de outro modo senão pela sua própria força de verdade, que penetra nos espíritos, ao mesmo tempo suave e fortemente (Dignitatis Humanae 1)”.

(OA 25, grifos nossos)

 

Em todas as épocas da história sempre foram os mais pobres que sofreram de modo mais intenso as injustiças sociais e os desrespeitos pelos Direitos Humanos. A luta contra a pobreza e a miséria é não apenas uma luta contra uma situação econômica opressora, mas, de um modo mais amplo, é sempre e indissociavelmente, uma luta pela cidadania plena e pelo respeito aos direitos humanos.

 

A partir dos anos 70, com a crise do Capitalismo Fordista e sua substituição pelo Capitalismo Flexível, ocorre um revés nas conquistas que o movimento operário havia conquistado ao longo das últimas décadas. As políticas neoliberais têm gerado novas formas de pobreza e exclusão e a forte retração do Estado de Bem Estar Social e das políticas previdenciária. Da guerra à pobreza passou-se em muitos casos à guerra ao pobre, como se este, e não a situação que o levou à pobreza e lá o mantém, constituísse o problema, com a construção de vigorosos mecanismos repressores e o desrespeito sistemático aos direitos fundamentais, levando à crise do Estado de Direito.

 

As políticas neoliberais, que no caso latino americano e caribenho substituíram por vezes as políticas repressivas das Ditaduras Militares, têm por objetivo permitir ao Capital desvencilhar-se da regulação (conjunto de leis, normas e regras) Fordista para que o mesmo possa dar continuidade ao processo de acumulação na atual fase do Capitalismo Pós-Industrial.  Nas primeiras décadas do século XX ao constituir-se uma nova fase do Capitalismo, que tem seu apogeu entre os anos 45 e 70, denominada Fordista, baseada na produção e no consumo de massa de bens industrializados, o enorme ganho de produtividade obtido pelo Capital permitiu a esse atender as reivindicações e lutas trabalhistas cedendo um conjunto de direitos no campo econômico e social, tais como menor jornada de trabalho, férias, salários maiores, estabilidade no emprego, acesso à saúde, à educação, sistema previdenciário com pensões dignas e seguro desemprego. Os benefícios sociais configuraram nesse momento o Estado de Bem Estar Social nos países do Capitalismo Central. Após a crise do Fordismo nos anos 70, quando o Capital já não era mais capaz de continuar dentro desse modelo sua corrida acumulativa e, ao mesmo tempo, as novas tecnologias permitiam que o mesmo buscasse um novo modelo de acumulação, passou-se ao desmonte das conquistas obtidas pelo Trabalho no Fordismo, por meio das políticas neoliberais.

 

Na atual forma do Capitalismo, a hegemonia pertence ao capital financeiro que subordina a si todas as outras formas de Capital Produtivo, inclusive o Capital Industrial. As conquistas trabalhistas foram então sistematicamente atacadas, sob acusação de serem não direitos fundamentais duramente conquistados, mas privilégios que devem ser combatidos. Ao mesmo tempo os benefícios sociais passaram a ser extintos ou fortemente reduzidos, também sob a acusação de serem privilégios e não a satisfação de direitos fundamentais, levando ao desmonte do Estado de Bem Estar Social. Nesse caso o objetivo é duplo. De um lado trata-se de expandir o Mercado, colocando em seu interior, mediante os mecanismos de privatização, a satisfação de necessidades antes atendidas pelo Estado tais como saúde, educação e previdência social. De outro lado, visa também a diminuir as despesas do Estado, de tal modo que esse possa realizar um crescente superávit primário e assim alimentar o mercado financeiro transferindo para este, na forma do pagamento de serviços da dívida, uma enorme soma de recursos retiradas como impostos das atividades produtivas.

 

Como resultado dessas políticas tem-se o aumento vertiginoso do desemprego e do trabalho precário e informal, com o reaparecimento de formas de exploração do trabalho que já estavam superadas, tais como o trabalho infantil. Tem-se também o aumento da pobreza e da disparidade de renda, seja no interior dos países, seja entre o Sul e o Norte. Surgem também amplos setores da população que são excluídos, vivendo formas de pobreza que antes se encontravam em vias de desaparecimento. As organizações tradicionais de luta dos trabalhadores, tais como os sindicatos, tendem a ser desqualificadas e são freqüentemente acusadas de defenderem não direitos, mas privilégios. Outras formas de organização popular, como o Movimento dos Sem Terra (MST) no Brasil, são quase sempre também desqualificadas, sob as mais diversas acusações, inclusive de serem corruptas, violentas e incentivarem atitudes socialmente nocivas, ou de representarem utopias do passado.

 

Ao mesmo tempo em que as políticas neoliberais promoveram a reforma do Estado diminuindo drasticamente seu papel no atendimento aos Direitos Sociais e levaram também a reformas na legislação que restringiram Direitos Econômicos gerando pobreza, exclusão e falta de cidadania, recrudesceram o papel policial e repressor do Estado para conter qualquer forma de violência ou organização que pudesse oferecer risco ao Capital e a seus detentores. Existe uma estreita correspondência entre o desmonte do Estado de Bem Estar Social nos Estados Unidos e na Europa e o crescimento da criminalidade e da população carcerária. A “política de tolerância zero”, expressão cunhada pelo prefeito de New York, Rudolph Giuliani, traduz a nova política dos Estados Neo-liberais que renunciando às políticas de integração social e econômica respondem com a criminalização à miséria crescente. Tal política altera substancialmente os pactos sociais vigentes internamente em todas as sociedades, redefinindo, para além da lei, o que é permitido e o que não é. Aos excluídos e mais pobres a lei se apresenta com novas regras, restringindo substancialmente o espaço de ação possível. De um lado, o Estado se mostra mais intolerante, disposto a criminalizar e punir qualquer transgressão e, de outro lado, as condições econômico-sociais e a cultura contemporânea alimentam e estimulam as ações transgressivas, o agir contra a lei e a violência. Forma-se assim um curto-circuito cujo resultado é o da formação de uma sociedade cada vez mais policialesca e mais transgressiva e violenta.

 

No prosseguimento deste caminho rumo a uma sociedade cada vez mais repressiva e policialesca, os terríveis atentados terroristas de 2001 forneceram a ocasião para que uma série de leis, fortemente restritivas no campo da cidadania, fosse aprovada. Estas leis já vinham sendo elaboradas, seja no contexto Norte-Americano, seja Europeu, antes dos atentados, com o objetivo de oferecer suporte legal para reprimir e controlar ações e movimentos que pudessem ser hostis aos governos neo-liberais assim como exercer uma maior ação repressiva contra as camadas marginalizadas da população e os migrantes. No caso americano, as leis aprovadas permitem um controle sem supervisão judicial da comunicação entre pessoas por telefone e internet, e até mesmo a prisão sem registro público e sem que haja uma acusação formal de pessoas consideradas suspeitas de terrorismo com fortes restrições ao direito de defesa. No caso da Comunidade Européia as leis além de preverem a possibilidade de um controle muito maior da população invadindo a privacidade, criminaliza uma série de atos que passam a poder ser enquadrados em uma vaga noção de terrorismo. Desse modo uma ação democrática de protesto civil pode, segundo como for interpretado pelo poder estabelecido, ser reprimida e punida como criminosa por ser classificada como terrorista. Tanto em um caso como em outro a legislação joga propositalmente com uma noção muito imprecisa de terrorismo que permite incluir, quando for julgado conveniente, praticamente qualquer ação dentro do raio de abrangência da legislação extraordinária aprovada, em princípio, para capacitar a defesa do Estado e da população contra o perigo oferecido pelos grupos terroristas.

 

A grande questão é que através da aprovação dessas leis, facilitada pelo clima de insegurança causado pelos atentados terroristas de 2001 e 2004, opera-se uma significativa transformação no Estado de Direito. Essas leis, próprias dos regimes de exceções, isto é, contrárias por sua natureza aos princípios basilares do Estado de Direito e de suas garantias de liberdade civil, política e democrática, traduzidas em princípios Constitucionais e preceitos legais, levam à construção de uma nova forma dos Estados Nacionais, onde a democracia é mantida em seus aspectos formais e é superficialmente harmonizada com o exercício real de poder de um Estado autoritário e discricional. Dessa forma os setores da sociedade que anseiam por mudanças, e buscam se organizar para promover alternativas econômicas, sociais e políticas encontram novas dificuldades e obstáculos para sua ação. Nesse contexto, deve-se recordar que, de modo especial, recai sobre os setores mais fragilizados da população uma maior restrição dos direitos civis e políticos e o peso mais intenso do arbítrio policialesco.

 

Não obstante essas novas situações no campo político e social deve-se ressaltar o avanço das lutas populares que em muitos de nossos países tem levado a importantes conquistas na esfera do poder político, estabelecendo Governos mais próximos ao movimento popular. A presente situação lança um novo desafio para a Comunidade Eclesial Latinoamericana e Caribenha. Ela tem necessidade de intensificar a Ação da Pastoral Social, dentro de sua já reconhecida Tradição, dando-se conta de que, se vivemos por um lado uma realidade política substancialmente diversa daquela dos anos 70, onde Ditaduras Militares espalhavam-se por quase todos os nossos países, por outro lado, as lutas populares pela justiça e pelos Direitos Humanos continuam a encontrar fortes obstáculos e renovadas ações em contrário.