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A Política à Luz do Evangelho

A Política à Luz do Evangelho

Como se relacionam política e História da Salvação

Jesus e a política

Até aqui foram descritos alguns aspectos mais importantes da vida política, tal como se pratica em nossos dias. Passaremos, agora, a ler, esta mesma realidade à luz da Fé. Consideraremos os desígnios de Deus com relação à atividade política, a partir da Revelação em Jesus Cristo no Reino de Deus. Na atividade política mostra-se o homem dividido entre amor e ódio, sempre a buscar de novo a fraternidade universal, apesar dos fracassos. Nessas atitudes de Jesus, na sua pregação do Reino de Deus e no seu mandamento de amor fraterno, buscaremos a luz para melhor entendermos como se relacionam política e História da Salvação.

Para o cristão, é evidente que o Evangelho deve iluminar todo o agir humano. Contudo, não significa isso que devamos buscar nas palavras evangélicas um modelo político elaborado para todos os tempos e lugares. O Evangelho, na verdade, não oferece técnicas, instrumentos de análises da realidade política ou elementos de planificação social e econômica.

O Evangelho, porém anuncia Jesus Cristo como nosso Salvador, Salvador que ilumina todo homem (cf. Jo 1,9) também na sua atividade pessoal e comunitária.

Jesus Cristo faz a cada homem uma série de exigências fundamentais com ralação ao seu destino eterno. Estas exigências o Evangelho as resume na palavra “conversão”. Conversão não consiste em passar alguém a praticar exercícios piedosos. Conversão é mudança radical do projeto humano na sua totalidade: o projeto humano passa a ter em Deus a sua referência de origem, ao mesmo tempo em que a sua orientação final. Deus se manifesta como sentido profundo da vida, como aquele que sacia toda sede humana de realização, em que encontra descanso o coração inquieto do homem.

A conversão não pode deixar de atingir profundamente todo o relacionamento do homem, seja consigo próprio, seja com seus semelhantes, seja com a sociedade, seja com as coisas criadas, de que se serve.

A conversão afeta, pois, também a vida política, suprema manifestação da sociabilidade do homem. A conversão dá ao cristão uma compreensão mais radical e profunda dos conflitos humanos. A conversão não deixa e influir, ao fazer o homem opções que determinam constitucionalmente as formas de convivência social. Orienta a escolha de metas prioritárias na condução dos negócios públicos.

Para o convertido a política jamais pode ser considerada algo de absoluto. A política será sempre relativa, isto é, comportará sempre abertura ao destino eterno do homem imortal, ao futuro prometido por Deus. A este futuro, ao qual todos os homens  convocados, Jesus Cristo dá o nome de “Reino de Deus”. O Reino de Deus é o centro da pregação de Jesus. Reino de Deus quer dizer: libertação total que Deus tem preparado para o homem. Libertação de tudo que o diminui, como o pecado, o espírito de vingança, as estruturas injustas, a própria morte.

Não só. O Reino de Deus importa também na libertação, que é abertura à graça divinizante, ao amor, à reconciliação, à fraternidade universal, à vida em plenitude. O Reino de Deus anunciado por Jesus Cristo não é só do futuro: já está em nosso meio (cf. Lc 17,21), porque já foi aproximado por Jesus mesmo (Mc 1,15).

Reino de Deus significa algo de muito concreto: significa Boa Nova da Salvação para os pobres, a luz para os cegos, o andar direito para os coxos, a saúde para os leprosos, o perdão dos pecados para os contritos, a misericórdia para os transgressores da Lei, a libertação para os oprimidos e a vida para os mortos (cf. Lc 4,16-21; Mt 8,16-17;11,2-6).

São transformações operadas na estrutura do mundo decadente, que tornam presente a novidade do Reino de Deus e antecipam a libertação total, que Deus quer realizar nos homens, na sociedade, no mundo.

O Reino de Deus, proclamado por Jesus, conquanto não se reduza à política, possui uma dimensão política. Porque importa na modificação global e estrutural dos fundamentos da velha ordem. Esta transformação é condição para o mundo pertencer ao Reino de Deus. Tomemos como exemplo as exigências do Reino quanto ao amor. Ao Reino pertence o Amor. O Amor é mais que a observância das Leis todas. O Amor implica na aceitação do inimigo. Ora, isso é mais do que simplesmente tolerar a quem não se conseguiu eliminar. É fraternidade verdadeira para com tosos os homens, também para com os marginalizados social e religiosamente porque somos filhos do mesmo Pai.

As exigências políticas da pregação do Reino de Deus, anunciadas, profética e missionariamente, por Jesus, provocaram profunda crise na situação social e religiosa. Jesus manteve-se soberanamente distante e independente com relação aos vários partidos políticos, como os fariseus, o dos saduceus o dos herodianos e dos essênios. Da mesma forma se comportou com respeito às tradições sagradas do passado (cf. Mt 5,21s, 27s, 31s, etc).

Jesus proclamou a mudança radical da estratificação social e religiosa do judaísmo: no Reino os humildes serão mestres (Mt 5,19; 11,25) corretores de tributos e prostitutas entrarão com mais facilidade no Reino dos Céus, do que os piedosos escribas (os teólogos daquele tempo) e os fariseus (Mt 21,31). Jesus não fez discriminação: acolheu as mulheres e os pequenos (Mc 10,13-16; Lc 13,10-13), os hereges e os cismáticos samaritanos (Lc 17, 11,19; Jo 4,4-42) e até pessoas de má reputação (Lc 7,36-50), os marginalizados da sociedade, como eram os pobres, os doentes, os leprosos. De outro lado escolheu também os ricos, dos quais aceitou convites para tomar com eles refeição, embora os tenha admoestado: “Vós sois infelizes, pois tendes a vossa consolação” (Lc 6,24). Declarou peremptoriamente: a felicidade, que todos esperam de Deus, vais ser dos pobres, dos que choram, dos que sofrem perseguição pela justiça (Mt 5,312)

Aos que se escandalizavam do seu procedimento disse: “Não vim chamar os justos, mas os pecadores. Os sãos não precisam de médico” (Mc 2,17). Jesus tomou partido por esses todos. E por isso foi chamado de “comilão, bebedor de vinho, amigo dos exatores e dos pecadores” (Mt 11,19).

Mais diretamente, não deixou Jesus de atingir os detentores do poder: a Herodes chamou de raposa (Lc 13,32), ironizou a pretendida autoridade dos chefetes opressores, que ainda ousavam intitular-se benfeitores do Povo (Lc 22,25). Verberou o luxo e os excessos das cortes (Mt 11,18). Recriminou os ricos e suas riquezas (Lc 6,24; 16,19-31; Mt 6,24). Subtraiu ao poder político de Cezar o caráter de sagrado e divino que se atribuía, ao dizer: “Restituí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21). Negou a César o caráter divino, sem negar-lhe o poder político, Jesus afirmou ainda que o poder político não pode arrogar-se a condição absoluta de última e decisiva instância. “Nenhum poder terias sobre mim, se não te fora dado do alto” (Jo 19,11), disse a Pilatos.

Por outro lado, Jesus não se comprometeu com nenhum ideal político determinado. Declarou tentação diabólica a proposta de conquista e dominação de todos os reinos da terra (cf. Mt 4,1-11; Lc 4,1-13).

O Reino de Deus não pode ser apropriado por nenhum modelo de convivência ou dominação política. Permanece aberto a todos o que se convertem. Por esse motivo Jesus freqüentou os círculos colaboracionistas dos publicanos, e teve mesmo discípulos entre eles (Mc 2,13,15), atendeu ao centurião romano de Cafarnaum (Mt 8,5-13), condenou a impaciência e o recurso à violências por parte dos rebeldes (lc 9,52-56; Mt 13,24-30; Mc 4,26-29; Lc 13,6-9), evitou os que o queriam proclamar rei (Jo 6,15), ordenou que não se tomassem represálias e mandou amar os inimigos (Mt 5,38-48), pregou a mansidão e a paz (Mt 5,5.9; Lc 19,41-42) enfim, na hora de sua prisão, deu ordens a Pedro para que recolocasse a espada na bainha (Mt 16,52; cf. porém, Lc 22,35-38).

A atuação de Jesus de tais conseqüências na ordem política e social, não tinha origem em opções políticas. A atuação de Jesus sempre foi eminentemente teocêntrica. Ela nascia das exigências do Reino de Deus. Deus é  perene centro de referência.

Que a referência teologal de Jesus não tinha sido aceita pelas autoridades políticas dos romanos, evidencia-se do processo judicial que o levou à morte. Para as autoridades religiosas dos judeus, Jesus era réu de morte, porque se fizera igual a Deus (Mc 14,61-64). Perante o procurador romano, para quem não valiam os argumentos de ordem religiosa, Jesus foi acusado de subverter da ordem pública (Lc 23-2.5), de pretender ao trono de Davi e conspirar para ser Rei dos Judeus. E por esse crime foi condenado (Jo 19,12-16). Esse o teor da inscrição afixada à cruz (Jo 19,19). Juridicamente, Jesus foi condenado pelo Estado Romano por um suposto crime político (cometido contra o Estado Romano) e não um crime religioso (violação da Religião Judaica). A morte violenta do Inocente resultou de sua pregação e de sua vivência concreta da mensagem do Reino de Deus. Embora não tenha sido um político profissional, Jesus, por sua pregação e suas conseqüentes atitudes questionou radicalmente a organização religiosa, social e política. Os detentores do poder religioso e político o perceberam muito bem., a popularidade de Jesus, em razão da Boa-Nova que proclamava ao povo,  colocava em perigo as posições privilegiadas dos hierarcas (Mc 11,18; Jo 4,1-3; 7,32.46-19; 12,10-11.19), e poderia provocar uma intervenção por parte das forças de ocupação romanas (Jo 11,48). A aliança do poder religioso (Sinédrio) com o poder civil (Pilatos) eliminou a vida daquele que era a própria vida (Jo 1,4).

A vida e o comportamento de Jesus estão dominados pela idéia do Reino, pela idéia da vinda e da instauração do Reino. O Reino é o Sentido absoluto, o pleno senhorio de Deus. Deus, ao enviar Jesus ao mundo, intervém no mundo, põe termo a todos os males, conduz todas as coisas à plenitude divina, humana e cósmica. Esta mensagem universal, religiosa, e transcendente comanda a atitude de política de Jesus.

Face aos poderes estabelecidos, a mensagem do Reino proclama:

  1. À luz do Reino, que vem, e que já está no meio de nós, as instituições e poderes temporais, religiosos ou políticos, são “penúltimos”, provisórios, relativos. Não podes identificar-se com a realidade primeira e última, definitiva e absoluta do Reino. Por isso, os poderes temporais são dessacralizados, despidos de toda pretensão de se absolutizarem. São reconhecidos, na medida em que são justos e autênticos, como antecipação do Reino, mas não como sendo o próprio Reino. Não se pode permitir a divinização do poder, pois a adoração só a Deus é devida, excluem-se como obras diabólicas a estatolatria, o teocracismo e todos os regimes que se apresentam como salvação total, como se contivessem uma política total, uma segurança total, uma ideologia total e absolutizante. Que a Igreja primitiva assim tenha entendido a relação do Reino para com o poder político transparece das páginas do livro do Apocalipse (cf. Apoc 13-17).
  2. Por outro lado, o poder político é necessário na presente ordem de coisas. Deve, porém, ser purificado (Lc 10,42). O mundo é o lugar necessário do Reino, mas não a sua origem, nem a sua medida. O Reino não é deste mundo (Jo 18-36). Começa a realizar-se neste mundo (Lc 17-21). Jesus não incita à eliminação do poder constituído. Aceita-o como um elemento da ordem da Criação. Admite que se lhe dê o que é necessário à sua sustentação (Mt 22,21). É nesse sentido que São Pedro e São Paulo acatam as autoridades civis e até pedem orações para o decente desempenho de suas funções (Rom 13,1-7; 1Pd 2,13-15; 1Tm 2,2).

A atitude de Jesus perante o poder político inspirou-se na universalidade da idéia do Reino de Deus.Referindo-se sempre ao Reino de Deus, pôde Jesus proferir o juízo crítico com relação aos poderes estabelecidos da esfera religiosa e ou política de tempo. Foi sempre a partir de sua compreensão do Reino, que Ele tomou a defesa dos que eram postos à margem da sociedade pelos detentores do poder. A estes especialmente dirigiu a sua palavra de esperança. A sua solidariedade com os deserdados do mundo foi tão profunda, que não temeu as intrigas, as calúnia, as perseguições.

 

Política e Reino de Deus, hoje

 

Ao lutar pela integração e pela realização da sociedade, o homem, ser político, cumpre o desígnio de Deus. A grande missão dos que exercem a política é a de buscar constantemente a vitória da justiça sobre a injustiça, da paz sobre a guerra, da reconciliação sobre os antagonismos, do amor sobre o ódio, da participação sobre a mera acumulação de bens, não apenas no âmbito interpessoal, mas também no âmbito comunitário da sociedade nacional e internacional.

O homem, ao exercer a política, não está vivendo uma realidade ao Reino de Deus. A salvação visa ao homem todo e a toda a humanidade. Através de uma maturação progressiva, a salvação conduz ao desenvolvimento total do homem e da sociedade, enfim reconciliados com Deus e consigo próprios.

Não há dúvidas que o Reino de Deus, núcleo central da mensagem e da esperança cristãs, está muito além de tudo quanto possa imaginar e atingir a compreensão humana. O Reino de Deus cremos, será um Reino perfeito, onde terão desaparecidos todas as incompreensões, as tensões, os antagonismos e os conflitos, que se manifestam da política. Haverá então um Reino de Paz, de Justiça e de Amor desfrutados em sua plenitude.

Duas constatações parecem evidentes, a esta altura da nossa reflexão:

  1. O Reino de Deus não pode ser considerado apenas como fruto natural e amadurecido do empenho e as conquistas humanas, por mais grandiosas que sejam. O Reino é também dom de Deus oferecido aos homens que n’Ele esperam.
  2. Esse Reino está orientado para o futuro, para o fim dos tempos, quando haverá um novo céu e uma nova terra. Enquanto, ainda que o Reino de Deus só deva atingir a sua plenitude final no mundo-que-há-de-vir, afirmamos, na fé, que ele foi manifestado em Jesus Cristo, já está presente entre nós, dentro de nós (cf. Lc 17,21).

Atua como um processo de fermentação: faz crescer, transforma por dentro. Justamente por não se tratar de uma realidade distante e somente por vir, o Reino de Deus, longe de nos distanciar da história humana e da vida presente, interpela-nos sem cessar a seu respeito. E não só interroga, como também nos move a empenhar-nos na construção da comunidade dos homens, para que se torne a imagem, ainda que imperfeita, da comunidade futura.

Se falamos em empenho por transformar é porque acreditamos que as contradições da comunidade presente já encerram um principio de superação de si mesmas. É precisamente o confronto entre a imagem deslumbrante do mundo-que-há-de-vir e o presente, marcado pela miséria, pelo medo, pela opressão, e pela injustiça, que conduz o cristão, consciente de sua fé, a uma esperança ativa e incessante.

A fé e a esperança no Reino futuro nada têm de alienante, ou de ilusório. Pelo contrário, a “utopia”, alimentada pelos que crêem, dá-lhes a certeza indispensável que a política não se exaure numa luta sem tréguas e sem saída. Em meios às contradições, que lhe são inerentes, revela a política o desejo profundo da humanidade em busca de um mundo que a transcende. Mesmo que não tenham disto consciência, os que exercem a política estão envolvidos no movimento histórico-salvífico instaurado por Jesus Cristo. Pois, se é verdade que o Reino de Deus nos é dado pela gratuidade divina, é verdade também que ele deve, de alguma forma, ser por nós preparado.

Os planos de Deus não contrariam os anseios profundos da humanidade, mas vêm ao seu encontro. O Reino de Deus não destruirá os êxitos obtidos pelos esforços humanos na construção de uma comunidade mais fraterna, mas virá, sem que se subtraia ao humano o próprio valor, purificá-los, completá-los e coroá-los, sem jamais deles prescindir. De fato, a humanidade não tem um fim natural e outro sobrenatural. Ela tem um fim único: o futuro prometido por Deus, e revelado em Cristo.

Contudo, neste itinerário total, a ordem do bem comum temporal histórico, procurado pela sociedade civil, dispõe de uma autonomia real embora relativa, que não podemos negar-lhe, sem voltarmos a uma etapa ultrapassada do desenvolvimento da humanidade. Este reconhecimento da consciência própria do bem comum histórico constitui um dos aspectos válidos da secularização, que se deve confundir com a perversão do secularismo. A autonomia relativa do bem comum histórico é uma conseqüência da radical desmitização de todo o criado pela concepção de Deus, que nos foi revelada em Jesus Cristo.

O processo de humanização – no qual a política exerce um importante papel – está pois, de alguma forma, implicado no crescimento do Reino de Deus, na medida em que o processo de humanização tende a aprimorar a presente condição  humana e manifesta um autêntico serviço prestado ao nosso próximo. Na ordem concreta, em que vive a humanidade, o Reino de Deus é a dimensão em profundidade da própria realização dos projetos humanos, uma vez que é deste campo aberto de Deus que o homem realiza sua tarefa de humanização. Dia ter-se tornado o Reino de Deus, embora absolutamente gratuito, concretamente, o horizonte último da ação do homem no mundo.

 

Política e serviço do próximo por amor

 

O amor ao próximo, identificado por Jesus Cristo como o amor a Deus, resume toda

a Lei e os Profetas. O encontro com o ouro é um verdadeiro encontro com o próprio Cristo. Assim interpretou a Igreja a parábola do Juízo Final. Todos. independentemente das posições que ocupam, deverão prestar contas dos seus atos: “… Tive fome e me destes de comer;… estive nu e me vestistes… estava na prisão e me visitastes…” Face a  surpresa dos eleitos conclui o Juiz Supremo: “ Na verdade vos declaro: todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,31ss).

O que transparece nesta parábola não é apenas o amor fraterno como critério decisivo da separação entre eleitos, – convidados  a tomarem posse do Reino que lhes fora preparado desde o início do mundo – e os condenados à frustração mais completa e consumada. O que surpreende é a identificação que o Juiz Supremo faz de si com os irmãos anônimos.

Essa identificação não se refere somente aos que servem os irmãos individualmente. Se podemos encontrar o Cristo em cada homem, poderemos encontrá-lo também naqueles que exercem a política que é, por definição, um serviço  prestado à comunidade dos homens. O dom total de si mesmo aos outros foi o supremo ato messiânico pelo qual Cristo remiu a humanidade. Todas as vezes que os homens seguem o exemplo de Cristo, ainda que o ignorem, estão se movimentando em direção ao Reino de Deus.

O Sínodo dos Bispos, numa página admirável do documento “A Justiça no Mundo”, que merece ser citada na íntegra, ensina:

“Mediante a sua obra e a sua doutrina, Cristo uniu, de modo inseparável, as relações do homem com Deus e com os outros homens. Com efeito, Cristo viveu a sua existência somo uma doação total de Si mesmo a Deus, pela salvação e libertação dos homens. Com a sua pregação proclamou a paternidade de /Deus para com todos os homens e a intervenção da justiça do mesmo Deus em favor dos pobres e dos oprimidos (Lc 6,21-23). De tal modo Cristo se fez solidário com seus irmãos “mais pequeninos”, que Ele mesmo disse: “Tudo o fizestes a um destes meus irmãos mias pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Desde as suas origens a Igreja compreendeu e viveu o evento da Morte e Ressurreição de Cristo como um chamamento de Deus à conversão à fé em Cristo e ao amor fraterno, realizado no auxílio mútuo levado até ao compartilhar voluntário dos bens materiais. A fé em Cristo, Filho de Deus e Redentor e o amor do próximo constituem tema fundamental dos escritos do Novo Testamento. Segundo São Paulo, a vida cristã resume-se toda na fé que realiza aquele amor e aquele serviço do próximo que implica a observância dos direitos da justiça. O cristão vive sob a lei da liberdade interior, isto é, num chamamento permanente à conversão do coração, da auto-suficiência humana para a confiança em Deus e do seu egoísmo para o amor sincero do próximo. Assim se realiza a sua autêntica libertação e o dom de si mesmo pela libertação dos homens. Segundo a mensagem cristã, por conseguinte, a atitude do homem para com os outros homens é integrada na sua própria atitude para com Deus; a sua resposta ao amor de Deus, que nos salva através de Cristo, demonstra-se eficaz ao amor e no serviço dos homens. No entanto, o amor cristão do próximo e a justiça não podem separar-se. O amor implica, de fato, uma absoluta exigência de justiça, que consiste no reconhecimento da dignidade e dos direitos do próximo. A justiça, por sua vez, alcança a sua plenitude interior somente no amor. Por isso mesmo que cada homem é, realmente, imagem visível de Cristo, o cristão encontra o mesmo Deus e a sua exigência absoluta de justiça e de amor em cada um dos homens” (Sínodo dos Bispos, 2ª AG, doc. “A Justiça no Mundo”.

Aproximar política e Caridade poderá parecer surpreendente, e mesmo temerário. O que predomina na vida política não é sempre o amor do próximo, mas é muitas vezes o empenho por dominá-lo. Entretanto, dede há muito (cf. a carta de São Paulo aos Romanos, na qual as reflexões sobre o poder político [13,1-7] estão inseridas em contexto dedicado ao amor mútuo [12,9-20 e 13,8-10] vê a Igreja na política uma forma possível, e mesmo privilegiada, de manifestação da Caridade Cristã. A Doutrina Social da Igreja, ao apelar para o bem comum e para a justiça demonstra a convicção da Igreja de que a Caridade Evangélica pode e deve se exercer através da atuação política (cf. AO n.48).

Essa convicção, que não é inteiramente nova, adquire em nossos dias novo impulso. Ainda que a caridade concebida como relação interpessoal nada tenha perdido do seu conteúdo e valor, o caminho seguido por uma parte da humanidade no sentido de compartilhar cada vez mais com todos os homens os bens materiais, culturais, espirituais, que se encontram hoje na posse de uns poucos privilegiados, vem mostrar que a caridade já não pode restringir-se às relações interpessoais, mas deve assumir dimensão política. A caridade passa hoje, também e essencialmente, pela atuação política.

As grandes decisões que determinam o clima favorável ou desfavorável ao desenvolvimento da sociedade e de cada um dos seus membros expressam-se em termos políticos. É a partir de decisões políticas que o ônus e os benefícios do progresso da nação serão bem ou mal distribuídos. Não é sem participação política que se realiza o crescimento de todos na liberdade, na dignidade e senso de responsabilidade, que constituem as prerrogativas de um povo. Não será sem decisões políticas que se dará maior ou menor atenção aos menos favorecidos e aos marginalizados. Delas decorre a alocação das parcelas destinadas no orçamento à execução e manutenção de obras prioritárias para o desenvolvimento de todos os membros da comunidade política. Pois o objetivo prioritário da atividade política deve ser o bem-estar de todos os membros da comunidade.