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Espiritualidade e Política

CENTRO NACIONAL DE FÉ E POLÍTICA “Dom Helder Câmara”

Ceci Baptista Mariani

ESPIRITUALIDADE e POLÍTICA

 

A espiritualidade como vitalidade

Todo ser humano é portador de espiritualidade. Ser espiritual não é privilégio de uma categoria de pessoas e, o que é importante, espiritualidade não se opõe a matéria, a corpo, como se costuma pensar, mas opõe-se à morte.

Quando ouvimos a palavra “espiritualidade”, nosso pensamento se volta não apenas para os aspectos históricos e lingüísticos mas também para as formas e figuras em que a vida se apresenta. “Espirituais são consideradas as experiências de vida dos monges e freiras, que renunciaram à “vida do mundo”. A “espiritualidade” é marcada por aqueles que se consagram as “estado espiritual”, que vivem no celibato e na pobreza, e que para seu “caminho de perfeição” se consideram obrigados aos conselhos evangélicos, isto é, ao sermão da montanha. As experiências interiores de Deus que caracterizam sua vida são muitas vezes ligadas à ascese, ao grande e ao pequeno jejum, bem como às horas tranqüilas dedicadas à meditação e à contemplação. Se são estas pessoas e grupos que moldam o que nós chamamos de “espiritualidade”, com isto ficam estabelecidas nítidas separações na vida de cada dia. Ao “estado espiritual” opõem-se os leigos, à cristandade das ordens religiosas a cristandade do mundo, às virtudes evangélicas as virtudes dos cidadãos na sociedade. Por isso muitas vezes gostamos de às experiências sensíveis contrapor as experiências espirituais. A mentalidade espiritualizada se ergue sobre a sensualidade carnal: Aquela é interior, esta superficial; aquela é reflexiva, esta não pensa em nada. A conversão real é substituída pela reflexão psíquica. Mas isso implica em que com esta espiritualidade se introduz na vida uma oposição que a divide e que lhe amortece a vitalidade.[1]

 

A espiritualidade como caminho para a Fonte

Espiritualidade é também caminho de encontro com o Espírito, que é origem de toda a vida, afirma também Leonardo Boff, explicitando que o espírito que é a dimensão profunda do humano, busca o Espírito que é fonte originária de onde brota e para onde se dirige toda a vida.

Espírito é a capacidade de identificar o fio condutor que por tudo penetra e tudo interconecta, chamando-se de mil nomes, como Energia suprema, Espírito infinito, Fonte originária de todo ser ou simplesmente Deus. [2]

Espiritualidade é busca existencial pela verdade, busca humana por um ponto de referência absoluto no próprio espírito, a partir do qual se passa a julgar tudo o que está ao redor. A busca da verdade será a sabedoria da morte, pois uma vez estabelecido o ponto absoluto, a partir desse ponto tudo se relativiza[3].

 

A espiritualidade cristã, O Espírito Santo em nós

A espiritualidade cristã é libertação, justificação, regeneração e santificação da vida operada em nós por obra do Pai, do Filho, e vivenciada no Espírito Santo.

A revelação neotestamentária afirma uma novidade radical. No Novo Testamento, o Espírito de Deus não se apodera dos indivíduos em ocasiões particulares, como no Antigo Testamento. Pelo dom do Espírito, o povo de Deus existe em condições novas: de Corpo de Cristo e Templo do Espírito. Na antropologia cristã, o homem novo é aquele em que o Espírito Santo habita e torna filho de Deus como uma presença nova, sobrenatural divinizante:

Deus, já presente por sua ação de criador e, portanto, substancialmente – porque sua ação é ele mesmo -, mas apenas por causa de ser e de operação, se doa e torna-se presente substancialmente como objeto de conhecimento e de amor, como termo de nosso retorno a ele enquanto Pai. Essa presença é pessoal: Deus não está somente em nós, mas conosco e nós com ele.[4]

O testemunho dos místicos é bastante esclarecedor a esse respeito, quando fala de Deus agindo, vindo soberanamente à alma para se unir a ela, nela, como ela está com ele, nele…[5]

A vida nova no Espírito e segundo o Espírito é vida “em Cristo”, vida filial. O Espírito Santo que habita o cristão de maneira pessoal e própria não age independentemente do Pai e do Filho. O Espírito Santo é “o único que pode nos fazer atingir a verdade teândrica de Cristo em sua profundidade”[6] e nos conduzir ao âmago da vida filial que é, escreve Congar, juntarmo-nos a Jesus em sua oração:

Nós conhecemos bem essa oração: “Eu te louvo, Pai” (Lc 10, 21, “sob a ação do Espírito Santo”); ”Pai, glorifica teu filho” (Jo 17,1); “Abba, Pai…” (no Getsêmani: Mc 14, 36; Lc 22,42); “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”(Lc 23,46). E, aquela que conhecemos bem: “Quando rezardes, dizei: Pai…” (Lc 11,2; Mt6,9).[7]

A filiação é, portanto, dom e promessa e o Espírito é ao mesmo tempo apelo ou exigência e princípio da vida santa[8].

 

O Espírito liberta, justifica, santifica

A liberdade do Espírito se experimenta na luta contra a carne. Este termo, segundo as escrituras, é uma categoria polivalente, define Congar, significa a condição terrena do homem e, nessa medida, é boa em si mesma. Por outro lado e ao mesmo tempo, a carne manifesta a fraqueza e a insuficiência da condição humana em relação à ordem divina[9].

Para o cristão que deve se aplicar em viver sob o regime do Espírito, a carne será expressão do princípio ou da sede de uma oposição ao que o Espírito quer. Neste contexto de tensão, o Espírito atua para a conversão do pecador, faz emergir diante da vida nova oferecida pelo Senhor Jesus, a consciência da miséria

O Espírito age dentro, onde ele penetra como uma unção. Ele nos faz experimentar, num nível mais profundo que o dos remorso por esta ou aquela falta, a atração soberana do Absoluto, do Puro, do Verídico, de uma vida nova oferecida pelo Senhor Jesus e ele nos dá, diante de tudo isso, uma consciência pungente de nossa miséria, da mentira e do egoísmo dos quais nossa vida está cheia. Nós nos sentimos julgados e, ao mesmo tempo, antecipados pelo perdão e pela graça. Caem então nossas falsas desculpas, o sistema de autojustificação e de construção egocêntrica de nossa vida.[10]

Essa é a verdade que promove a liberdade. O Espírito faz conhecer aquilo que escraviza, colocando-nos diante do dom de Deus. Segundo Tomás de Aquino:

O homem livre é aquele que pertence a si mesmo; o escravo pertence a seu patrão. Assim qualquer um que age espontaneamente, age livremente; mas aquele que recebe seu impulso de outro não age livremente. Portanto, aquele que evita o mal porque é um mal, mas em razão de um preceito do Senhor, não é livre. Por outro lado, aquele que evita o mal, esse é livre. Ora é aí que opera o Espírito Santo que aperfeiçoa interiormente nosso espírito nele comunicando um dinamismo novo, de tal modo que se abstenha do mal por amor, como se a lei divina o mandasse, e assim ele é livre, não porque não esteja submisso à lei divina, e sim porque seu dinamismo interior o leva a fazer aquilo que a lei divina prescreve.[11]

A liberdade cristã é combinação de despojamento e ousadia, experiência paradoxal só possível ao humano pelo Espírito se Deus que o habita.

 

O fruto do Espírito é o Homem Novo

Nasce, pela verdade e a graça do Espírito que une transcendência e imanência, o homem para Deus e para os outros “livre e verdadeiro, exigente e misericordioso, concentrado e aberto a todos”[12] destinado às bem-aventuranças que é, para Tomás de Aquino, o ato perfeito das virtudes e sobretudo dos dons.


Eis que eu faço nova todas as coisas

 

A novidade criadora se explica não pelo passado, mas sim pelo futuro. É evidente que a ação do Deus Vivo só pode ser criadora. Entretanto, a maravilha do Deus que se revela a Abraão, Isaac e Jacó é que seu ato criador vem do futuro. É profético. Esse Deus “vem” ao mundo, como que ao seu encontro. Ele está adiante e ele chama, impulsiona, envia, engrandece e liberta (…).

O Evento pascal, advindo uma vez por todas, como se torna nosso hoje? Por aquele mesmo que é o artesão desde o princípio e na plenitude dos tempos: o Espírito Santo. Ele é pessoalmente a Novidade em ação no mundo. Ele é a presença de Deus-conosco, unido ao nosso espírito (Rm 8,16). Sem ele, Deus está longe, Cristo está no passado, o Evangelho é letra morta, a Igreja simples organização, a autoridade dominação, a missão propaganda, o culto evocação e o agir cristão não passa de uma moral de escravos.

Nele, porém, e numa sinergia inseparável, o cosmo é soerguido e geme nas dores de parto do Reino, o homem está em luta contra a carne, Cristo ressuscitado está aí, o Evangelho é poder de vida, a Igreja significa a Comunhão trinitária, a autoridade um serviço libertador, a missão um Pentecostes, a liturgia memorial e antecipação, o agir humano é deificado.

O Espírito Santo (…) faz nascer, ele fala pelos profetas (…) ele atrai para o segundo evento. “Ele é o Senhor e dá a vida” (Símbolo niceno-constantinopolitano), é por ele que a Igreja e o mundo clamam com todo o seu ser: “Vem, Senhor Jesus!” (Ap 22, 17-20)

É essa energia do Espírito Santo que introduz em nosso mundo horizontal um dinamismo novo (…). [13]

 

[1] J MOLTMANN. O Espírito da Vida, uma pneumatologia integral, Petrópolis, Vozes, 1998, p. 88.

[2] Leonardo BOFF, Depois de 500 anos, que Brasil queremos?, São Petrópolis, Vozes, 2000,, p. 99.

[3] Hans Urs VON BALTHASAR, o Evangelho como norma crítica de toda a espiritualidade na Igreja. Concilium 5, maio de 1965, p.6

[4] CONGAR, Creio no Espírito Santo II, São Paulo, Paulinas, 2005. p.119.

[5] Ibidem, p.120.

[6] Ibidem, p.142.

[7] Ibidem, p.147.

[8] Ibidem, p.150.

[9] Ibidem, p. 163.

[10] Ibidem, p.169-170.

[11] Ibidem, p.173-174.

[12] Ibidem, p.190.

[13] Dom Inácio Hazim, metropolita ortodoxo de Lataquié citado por Congar em Creio no Espírito Santo II, p.56-57