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Fechamento das celebrações do centenário de nascimento de Dom Helder Câmara

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Dom Hélder Câmara: por ocasião do fechamento das comemorações do seu centenário de nascimento – 07.02.10

Textos da Liturgia da Palavra: Isaias 6,1-8;  1Cor 15,1-11- Lc 5,1-11.

 

Prezados senhores bispos Dom Fernando Saburido, Dom Genival Saraiva, Dom Clemente Isnard; senhores padres concelebrantes; meus irmãos e minhas irmãs.

Uma saudação amiga a todos os presentes – na fé que nos une, na esperança que não decepciona e na disponibilidade para o amor-serviço.

Meus agradecimentos à Arquidiocese pelo privilégio de ser convidado a presidir esta celebração, como padre, em sintonia com o Papa Bento XVI que convocou a Igreja para viver este Ano Sacerdotal.

Com saudades relembramos Dom Helder Câmara neste fechamento das comemorações do seu centenário de nascimento. Faria 101 anos neste dia 07 de fevereiro de 2010. Poderia ainda estar conosco (uma pesquisa da Universidade Católica de Brasília revelou que há no Brasil quase vinte e cinco mil pessoas com mais de cem anos).

No entanto, em vez de ficarmos entristecidos com sua Páscoa – passagem para a vida eterna -, devemos dar graças a Deus pela sua vida plena de sabedoria e de doação a serviço dos irmãos.

Nesta perspectiva os textos bíblicos da Eucaristia de hoje nos iluminam nesta celebração da saudade mas sobretudo de agradecimento, nos deixando uma herança.

São Paulo nos falou da ressurreição de Jesus como vitória sobre a morte. O mesmo Cristo ressuscitado “está no meio de nós” (como repetimos tantas vezes nas celebrações). Ele está no meio de nós para dar força e coragem para seguirmos seus passos. O profeta Isaias nos provoca com sua bela resposta ao chamado de Deus: ”Aqui estou, Senhor, envia-me…”

São Lucas mostra a pesca milagrosa de Jesus e a escolha dos primeiros discípulos com a recomendação: “Não tenham medo! De agora em diante vocês serão pescadores de homens! Eles levaram o barco para a margem, deixaram tudo e seguiram Jesus”.

Dom Hélder, nos passos da fidelidade ao seguimento de Jesus, nos deixou também uma herança exigente. Temos, também nós, uma missão a cumprir, uma vocação como o profeta Isaias a responder: “Aqui estou, Senhor, envia-me”!

Na sua Mensagem fraterna ao passar de Arcebispo Metropolitano a Arcebispo Emérito, nosso querido Dom nos dá um dever de casa a realizar: reaprender o que ele conosco aprendeu mas sobretudo vivenciar o que ele nos ensinou pelos seus ensinamentos e pelo testemunho de vida evangélica.

Ouçamos suas reflexões-avaliação nessa Mensagem de despedida:

Foi aqui que aprendemos que não basta ao pastor trabalhar para o povo. É preciso sempre mais trabalhar com o povo, obedecer ao seu ritmo e seu tempo, caminhando junto com ele, sem imposições, com a humildade de quem vem servir e não ser servido. Foi aqui que aprendemos que não basta que cedamos nossa voz e nossa vez ao povo. É preciso trabalhar para que ele, sim, conquiste sua própria vez e fale por sua própria voz. Foi aqui que tivemos um curso vivo e vivido de teologia, da maior importância, mesmo para quem é doutor, de Verdade, por Universidades Européias…”

Dom Helder termina esta saudação de despedida dizendo: “Bendito seja Deus, cuja misericórdia divina nos permitiu testemunhar a simplicidade da Fé, a sabedoria dos humildes. Permitam-me que minha palavra seja a mesma da saudação fraterna da chegada ao Povo de nossa querida Arquidiocese, católicos ou não católicos, crentes ou descrentes: louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Jesus Cristo dos Morros e dos Alagados, dos Córregos e Canais; Jesus Cristo, Camelô e Desempregado, Canavieiro, Pescador e Favelado. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo em toda a crescente multidão de Severinos, sem teto e sem pão, sem nome e sem endereço, que constituem a maioria de nossa Arquidiocese. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo de nossas queridíssimas Comunidades de Base, de todos os movimentos e Pastorais de nossa Arquidiocese, que nos dão a belíssima lição de confiar nos Pobres e nos humildes. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo por este brado de esperança que podemos cantar com o nosso Povo: “Eu acredito que o Mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no menor” (repetir com o povo, cantando).

Esta despedida explicitava a doação ao povo da Arquidiocese nos 21 anos de pastoreio em Olinda e Recife. Era uma prestação de contas que fazia aos seus diocesanos desde o memorável dia 12 de abril de 1964 quando assumiu o pastoreio em Olinda e Recife, como arcebispo, em plena ditadura militar no Brasil e em pleno andamento da renovação da Igreja pelo Concílio Vaticano II.

Estes dois fatores históricos supracitados (ditadura militar e renovação conciliar) acentuavam a importância primordial da sua presença no Nordeste. Tornavam Dom Hélder um homem de características excepcionais para assumir o pastoreio numa região sofrida como a nossa, numa cidade cheia de contrastes sociais como o Recife, num momento político específico. A cidade era palco de numerosas prisões por motivos políticos. O clima de medo invadia a população.  Dom Hélder, logo na mensagem de chegada, abre o coração aos seus diocesanos, procurando desarmar os espíritos. Fez uma saudação ao povo permeada de liberdade evangélica, envolvida por critérios de Bom Pastor:

“Quem sou eu e a quem estou falando ou desejando falar – um nordestino falando a nordestinos, com os olhos postos no Brasil, na América Latina e no mundo. Uma criatura humana que se considera irmão de fraqueza e de pecado dos homens de todas as raças e de todos os cantos do mundo. Um cristão se dirigindo a cristãos, mas de coração aberto, ecumenicamente, para os homens de todos os credos e de todas as ideologias. Um Bispo da Igreja Católica que, à imitação de Cristo, não vem para ser servido mas para servir…” .

Ele plantava aí a semente que ia prosperar nos 21 anos vindouros, duas décadas de lutas e esperanças. O conteúdo da mensagem inicial sintetizava a plataforma de seu pastoreio na arquidiocese de Olinda e Recife… Vai tomando forma, tomando carne nos acontecimentos conflitivos dos anos seguintes na cidade.

Entre arcebispo de uma Igreja Local e Bispo da Igreja católica sua presença irradiava confiança e suas palavras sedimentaram a mística do compromisso evangélico.

Na Arquidiocese de Olinda e Recife ninguém conseguia trabalhar, à época, sem ser levado a se questionar diante das exigências da Igreja do Vaticano II, de Medellin e Puebla, diante dos sinais dos tempos como interpelação de Deus.

Ele repetia sempre: “Quem é despertado para as injustiças geradas pela má distribuição da riqueza, se tiver grandeza d’alma captará os protestos silenciosos ou violentos dos pobres. E o protesto dos pobres é a voz de Deus”.

Seus pronunciamentos, homilias e ação pastoral começaram a incomodar as autoridades que o condicionaram ao silêncio diante dos meios de comunicação de todo o País. Um Ofício, dirigido a todos os órgãos de comunicação, os proibia de falar sobre ele seja a favor, seja contra. Era realmente um grande castigo, pois o forte da sua mensagem era transmitido através destes meios. Conforme a expressão do próprio arcebispo: “decretaram que eu não mais existia”. Só sete anos depois, a entrevista marcante ao Jornal do Brasil o liberava da censura nos meios de comunicação; a manchete do jornal fez história: “Quanto mais negra a noite, mais carrega em si a madrugada”.

Dom Helder tinha como lema missionário o versículo da carta de São Paulo aos Romanos: “esperar contra toda esperança, como Abraão” (cf. Rom 4,18). Para tanto, estimulava, através de suas viagens internacionais, as minorias abraâmicas, grupos formados por pessoas que, apesar dos pesares, esperavam com firmeza permanente, se comprometendo com a construção de uma sociedade justa e fraterna.

Algumas das mensagens da sua trajetória missionária eram frutos amadurecidos da dinâmica pastoral da sua Igreja Local – Olinda e Recife.

As linhas mestras da evangelização na arquidiocese do Recife e Olinda explicitavam a criatividade impulsionada pelo Concílio Vaticano II:

a valorização dos cristãos leigos/as como mensageiros de esperança nos respectivos campos de atuação;

– os padres eram valorizados colegialmente, sobretudo pelo Conselho Presbiteral;

– a criação do Movimento de Evangelização Popular, chamado “Encontro de Irmãos” – as mais de 400 Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) na arquidiocese;

– a Operação Esperança, criada em primeiro lugar para atender aos flagelados das chuvas na cidade do Recife;

– apoio total à atuação da Comissão de Justiça e Paz, sobretudo preocupada com as comunidades populares e com os numerosos presos políticos;

– a criação de um Instituto de Teologia do Recife (ITER) para formar os Ministérios diversificados na perspectiva do trabalho eclesial no nordeste do Brasil;

– o incentivo a movimentos para levar o Evangelho às classes médias

– presença contínua nas paróquias, celebrando por vezes três a quatro missas aos domingos para atender os apelos da população…

Seguramente o ideal apresentado por Dom Helder ao assumir o pastoreio da arquidiocese de Olinda e Recife, no dia 12/04/1964, foi largamente realizado, na busca de uma Igreja missionária e profética. Suas próprias palavras no-lo explicitam, como ouvimos na mensagem de despedida, intitulada “Sinais dos tempos, Sinais de Deus – 1964-1985”.

Cumpre a nós sermos, como ele, fiéis aos apelos do Cristo Ressuscitado, que continua chamando a todos nós a sermos missionários/as, semeando boas sementes, ou lançando as redes em águas mais profundas para uma nova pesca milagrosa.

 

Padre José Ernanne Pinheiro, assessor da CNBB.