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“Não sentir vergonha quando mente é algo que torna você muito poderoso na política”. Entrevista com Thomas Friedman

Foi um movediço correspondente no Oriente Médio. Entre outros fatos históricos, cobriu a guerra civil no Líbano e a intifada em Israel. Seu livro From Beirut to Jerusalem [De Beirut a Jerusalém], publicado em 1989, é uma das grandes crônicas do jornalismo no século XX. Thomas Friedman, nascido em Minnesota, em 1953, passou por Buenos Aires para apresentar seu último trabalho, Gracias por llegar tarde, publicado, aqui, por Paidós. O subtítulo é Como a tecnologia, a globalização e a mudança climática irão transformar o mundo nos próximos anos.

Preocupado com a ascensão de Donald Trump, que enfrenta eleições legislativas de meio de mandato na terça-feira, 6 de novembro, Friedman conversou com este jornal e ofereceu a sua visão. Não falou sobre a América Latina porque não é um especialista na região. Não tocou na realidade do Brasil ou da Argentina. Contudo, a todo momento parecia ser o caso.

A entrevista é de Martín Granovsky, publicada por Página/12, 04-11-2018. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.
A combinação de algoritmos nas redes, campanhas eleitorais fake news pelo WhatsApp e muito dinheiro está prejudicando a democracia? Sobre estas coisas você tem muita coisa escrita. Sobre as vantagens das redes…

… e as desvantagens.

Exatamente. E qual é o balanço?

A combinação que você descreve é muito tóxica. Já a escrevi em meu livro O mundo é plano, quando analisei a globalização. Disse que a globalização podia ser incrivelmente democratizante e incrivelmente autoritária. Incrivelmente humanista ou incrivelmente desumanizadora. O ponto são os valores que se coloca no sistema. Como o futebol, o primeiro tempo foi fantástico. O segundo tempo é um pesadelo: tecnologias poderosas nas mãos de gente com valores degradados. É um perigo. Eu trabalho em um jornal. De um lado estão as regulações e do outro lado os editores. Os reguladores estabelecem que se você coloca um anúncio político no The New York Times, precisa se identificar. Os editores destacam que se você publica algo falso, precisa o esclarecer depois. Então, apareceu algo grande. E disse: “Nós não somos um jornal, somos uma plataforma. Somos diferentes. Não precisamos nem de editores, nem de regulação. Mas, queremos todos os seus leitores e todos os seus anunciadores”. No topo estavam pessoas legais, que vestiam camisetas no lugar de camisas. Pediram para que acreditássemos neles e acreditamos. Então, depois traíram nossa confiança.

Por quê?

Por dinheiro. Foi terrível. Não gosto nada dessa gente.

Mas, não ocorreu desde o início?

Sim. E não percebemos.

Mas, você usa as redes. Sigo você no Twitter.

O New York Times tuíta minhas colunas. Não escrevi mais de quatro ou cinco tuítes em minha vida. Mas, além disso, prefiro não ler Twitter. Não quero nem saber o que disse esse tipo particular de audiência. No Twitter, ninguém irá recomendar meu livro sobre o Oriente Médio ou analisá-lo.

Antes que existisse o Twitter, dei exemplares do livro ‘From Beirut to Jerusalem’ para vários jornalistas.

Fico feliz em saber disso. Contudo, no Twitter não oferecem meu livro. Dizem-me que sou um idiota ou uma má pessoa. Se lhes desse atenção, ficaria louco ou conduziria meus atos por seus ataques. Não é uma tecnologia saudável.

E por que tanta gente age assim?

É praticamente anônimo ou é possível ser. É distante. Se estamos frente a frente, não irei insultá-lo. Irei dizer: “Martín, olha, discordo totalmente de sua opinião…”. E, em todo caso, debateremos. No Twitter, você é chamado de “mercenário”, “prostituta”, “imbecil”… E quanto mais forte melhor, porque atraem a atenção.

Está bem, mas essa é uma escolha pessoal.

Claro, tenho o privilégio de publicar no The New York Times. Se não, talvez, utilizasse o Twitter.

O uso das redes para o ataque pessoal é uma patologia?

A esta altura, sim. Em meu livro, conto a história da revolução do Facebook no Egito. Não teriam conseguido começar sua revolução sem o Facebook. Não podiam vencê-la com o Facebook: começaram os falsos rumores e as campanhas contra. Além disso, ninguém podia ascender nas redes para ser o líder.

No entanto, a tecnologia não impede que alguém se sobressaia. Aí está Donald Tump, que chegou a candidato do Partido Republicano e depois a presidente.

São situações distintas. No caso do Egito, precisavam de um sistema político novo para gerar um líder. Converter uma revolução em instituições e em um novo regime constitucional. Os Estados Unidos já têm um sistema político e um líder pôde usar a tecnologia a sua disposição. O problema no Egito é que não tinham uma sociedade civil. Careciam de sindicatos independentes, grupos de mulheres, advogados articulados, meios de comunicação autônomos, organizações não governamentais… Por isso, a Tunísia mostrou uma face distinta em sua revolução. Ali, sim, havia uma sociedade civil forte. Um caso atual é a Arábia Saudita: zero instituições, zero sociedade civil. Se o rei quer que alguém seja assassinado, assim será. Nada o impede. Os Estados Unidos não têm sequer embaixador lá. Trump não enviou nenhum porque também não acredita nas instituições, mas, sim, em ligações pessoais.

Ficou surpreso com o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi nos escritórios diplomáticos sauditas de Istambul?

Fiquei muito chocado em nível pessoal. Não me surpreendeu politicamente.

O assassinato de Khashoggi em uma repartição oficial não é mais uma forma de obscenidade? Obscenidade política. Obscenidade da violência. Que seja notado.

Sim. Há uma pornografia da violência. E se acrescenta a falta de limites.

Com as devidas precisões, pois o Facebook ou WhatsApp não matam, também se vê aí um exibicionismo da violência. Uma pornografia, como você disse.

Sim. É como se dissessem: “Posso fazer o que quiser”.

Poder selvagem.

Vou anotar, já que estamos. Poder selvagem, sim. Voltando à pergunta, não se pode comparar o que se escreve e difunde com alguém que diretamente mata.

Mesmo levando em conta essa enorme diferença, há um ambiente que o torna viável?

Não transfiramos o que ocorre na Arábia Saudita para qualquer outra situação. É algo único. Como foi algo estranho, antes, a permissão para que as mulheres dirijam carros. Trump não entende a Arábia Saudita. E tampouco o Oriente Médio.

Não vamos dizer que também não entende os Estados Unidos… É presidente.

Possui uma compreensão crua das emoções básicas das pessoas. É um grande intérprete das pessoas e de suas debilidades. Mas, às vezes, você não só necessita ler o que as pessoas querem, como também as conduzir daqui até ali. Você não pode registrar as coisas e afirmar: “Ok, você é um racista, já percebi, irei percorrer o mesmo sentido que você e vou demonizar os imigrantes”. Os líderes precisam ser mais equilibrados. Trump só pensa em Trump e em manter o seu poder. Não quer ser o presidente de todo o povo, mas o presidente de sua própria base. Suponhamos que sua base seja de 50,00000001%, ou seja majoritária. Não deveria ficar parado nesse ponto.

Às vezes, Trump é comparado a Ronald Reagan, o presidente que governou de 1981 a 1989.

Reagan sempre buscou alargar sua própria base para outros setores, inclusive democratas. São diferentes.

A sociedade civil nos Estados Unidos é mais frágil que antes?

Não, ainda é sólida. Apesar de Trump, que quer infectar tudo, mas não consegue. Em dois anos, não conseguiu isso. Em quatro, teria mais chances, e oito anos com ele representariam algo perigoso.

Até que ponto concreto?

Não sei. Sim, sei que decidi contribuir para freá-lo.

Trump, por sua vez, quer frear a China. O que seria a China?

Um caso de capitalismo autoritário. Não me agrada para minha cultura, mas para a cultura deles o modelo funciona.

A Rússia também está na agenda.

Capitalismo cleptocrático. Ou cleptocracia autoritária, melhor dito.

Trump também?

Talvez gostaria disso. Mas, não pode. As instituições o impediriam.

A presença de Trump mudou sua forma de exercer o jornalismo?

Talvez no sentido de que já não se trata de diferenciar entre esquerda e direita, mas, ao contrário, de algo mais profundo. Já não é o debate do sistema de saúde, mas, sim, do que é a verdade e o que é a mentira. Se percebo que meu país está em risco, é óbvio que minha voz soará distinta.

É a primeira vez que vê seu país em perigo?

Sim. Se eu tivesse sido jornalista durante a Guerra Civil que se travou entre 1861 e 1865, certamente, também minha voz teria sido diferente. Vivemos momentos dramáticos. A Primeira Guerra Mundial. A Segunda Guerra. A guerra do Vietnã foi um momento de tremenda polarização interna. Vietnã foi terrível, mas não estava em perigo o país como tal.

E com Richard Nixon?

Os partidos intervieram. Inclusive, o Partido Republicano. Hoje, temos um presidente ao qual não lhe importa seu partido, apoiado por seu trabalho nas redes e por um canal, Fox, sem integridade moral. É uma combinação muito perigosa e poderosa.

Salvo que seja simples manipulação, tem que haver alguma explicação social.

Há uma questão identitária. De ódio. Os que estão com Trump odeiam os que não estão com Trump. E Trump é habilíssimo em se esconder por trás desse fenômeno. Diz: “Se odeia os outros (não importa se as elites, as empresas de tecnologia ou os jornais) vota em mim”.

O ódio é uma ferramenta política.

Absolutamente. Trump sempre encontra temas para dividir a sociedade. Imigração, por exemplo. “Aí vêm os hondurenhos!”. Então, toma um sentimento, o amplifica e o utiliza para mobilizar vontades em seu favor. Não sente nenhuma vergonha quando mente e diz que entre os hondurenhos há gente perigosa do Oriente Médio. Não sentir vergonha é algo que torna você muito poderoso na política.

Perguntava a você sobre a sociedade. Em seu último livro, há pistas.

Mudaram as noções de gênero, de normas culturais, de tipo de trabalho. Muitas pessoas se sentem perdidas e angustiadas. Trump prometeu interromper os ventos de mudança. Agora, possuem a ilusão de voltar aos Estados Unidos de 1950. Trump entende esses sentimentos e fala às vísceras das pessoas. Se queremos outro tipo de liderança, também os novos líderes deveriam aprender a falar dessa maneira.

Façamos um exercício. O líder é você e lhe ouvem eleitores de Trump do Centro-Oeste.

Ok. Estamos em West Virgínia. Começaria minha conversa com um grupo de mineiros do carvão dizendo isto: “Não vou lhes falar sobre a mudança climática, mas do que realmente importa para vocês. De seus lares, de seus afetos, de sua comunidade. Sei que às vezes vocês associam a preocupação com a mudança climática com o fim de suas comunidades. Sentem-se em perigo. Vocês querem continuar trabalhando nas minas e amam a sua comunidade. Amam o clima, a comida, a paisagem, suas pequenas cidades, os vizinhos… Não tenham medo. Irei ajudá-los a conservar tudo o que vocês amam. Se me derem uma chance, juntos faremos as coisas como seus pais ou seus avós. O que importa para vocês é o mesmo que para mim”.

Não era a forma como Hillary Clinton falava.

Claro, não se pode dizer a alguém: “É deplorável que você não compreenda nada de mudança climática”. É preciso se conectar com as pessoas, não?

Fonte IHU