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O Caminho da Reflexão Ética no Pensamento Ocidental – Manfredo Araújo de Oliveira

O Caminho da Reflexão Ética no Pensamento Ocidental

Manfredo Araújo de Oliveira

 

Introdução

 

            A filosofia emergiu no Ocidente intimamente ligada à “experiência originária” da vida humana, ou seja, à experiência de que é o homem mesmo o responsável por seu próprio ser, já que não o recebe a não ser como possibilidade. A experiência da “contingência radical” é, assim, a experiência fundante de sua vida: nada garante, de antemão, a efetivação de suas possibilidades: nem seus instintos, nem as instituições que ele cria para regular suas relações. O homem é, deste modo, o ser de decisões inevitáveis: toda sua vida é uma seqüência de decisões, em que ele se põe diante de alternativas diversas em relação a suas ações, através do que, em última análise, ele toma posição a respeito da orientação de fundo de seus existir. Aqui se desvela a diferença originária do homem em relação a tudo mais com que ele se depara em sua vida: ele não se encontra simplesmente preso à conexão natural universal e por conseguinte não está já plenamente determinado em sua essência, mas é posto no “aberto”, o que significa que sua vida é fundamentalmente, tarefa, isto é, a da construção de sim esmo. Sua tarefa primeira e inevitável é dar a si mesmo uma configuração específica de si mesmo e, portanto, abrir para si o espaço das diferentes possibilidades de sua própria realização. Ser dado a si mesmo como tarefa é o que constitui o sentido fundamental da liberdade, que é tão central em seu ser que não é dado ao homem usar ou não usar desta possibilidade, pois mesmo a renúncia à configuração de seu ser já é uma decisão. Portanto, enquanto ser da liberdade, o homem é o ser da decisão e, conseqüentemente, do risco e da história como espaço de sua possível efetivação: em cada decisão ele toma, assim, posição sobre a configuração se sua essência e, portanto, se constitui ou não como pessoa. Mais do que isso, ele se experimenta enquanto tal chamado a assumir-se explicitamente como liberdade pessoal e fazer-se livre para sua própria liberdade pessoal.

Dizer que o homem é o ser que não tem , de antemão, seus próprio ser garantido e que ele tem que buscá-lo em suas próprias ações, implica dizer que uma primeira e inevitável pergunta é: que ações efetivam meu ser? Que decisões me efetivam verdadeiramente? Qual a razão de minhas preferências? Numa palavra, como justifico o que faço? Com a questão da justificação das decisões, ou seja, como pergunta a respeito da decisão justa, da ação que se pode assumir responsavelmente, surgiu no Ocidente a filosofia prática ou ética. A filosofia prática emerge, então, como uma decorrência da própria experiência da finitude e da liberdade: porque o homem se põe no aberto, surge uma exigência fundamental, a saber, a experiência de uma acareação crítica  se suas decisões nas diferentes situações históricas em que se encontra inserido. Do seio da própria historicidade da vida humana emerge a reflexão crítica com a pretensão  de se perguntar pela justificação daquilo que o homem faz de sua vida. Assim, ela inaugura uma forma nova desta vida: aquela em que o homem, argumentando, procura dar razão a seu esforço de busca de uma configuração de seu próprio ser. A filosofia é uma reflexão crítica radical no sentido de explicar os fundamentos da vida histórica do homem. E o homem ocidental, no caminho de sua história reflexiva, elaborou alguns modelos fundamentais para responder à questão da justificação das ações humanas. Vamos tentar percorrer este caminho da reflexão ética no pensamento ocidental tematizando estes modelos básicos de resposta à questão fundamental das ações humanas.

 

  1. O modelo do realismo

 

Introdução

 

Uma primeira postura de articulação da filosofia enquanto reflexão radical é a que parte da afirmação da realidade como algo que existe independentemente da consciência. O conhecimento é compreendido como reprodução na mente desta realidade e, conseqüentemente, a verdade como correspondência entre o pensamento (respectivamente a linguagem) e a realidade.

Na forma aristotélica de realismo, a tarefa suprema da filosofia consiste em tematizar os pensamentos primeiro-últimos de todos os saberes na media em que são tematizados os princípios comuns a toda realidade, o que torna possível o discurso humano. nesta perspectiva, filosofia é a ciência dos fundamentos primeiro-últimos, aquilo que no pode ser objeto de demonstração precisamente como pressuposto de toda demonstração e, portanto, condição de possibilidade de todo discurso sensato e de todos os seres.

 

A fundamentação da ética numa postura realista

 

  • O homem enquanto ser espiritual e dotado de linguagem

 

A ética, sendo para Aristóteles uma consideração das coisas humanas, só pode ser entendida no horizonte de uma concepção do homem, que Aristóteles tematizou em lugares diferentes de toda sua obra. Um dos lugares privilegiados é a consideração sobre o espírito, feita no contexto da tentativa de captar o fenômeno da “vitalidade” (psyché) . Vida, para ele, significa sempre estar em contato com a alteridade, ser informado ou informar-se de algo. Vida, numa palavra, é ser aberto a algo, uma identicidade na diferença.

Aristóteles distingue duas formas fundamentais de vitalidade: a aisthanestai, a percepção na base da recepção sensível de dados, e o noein, o conhecimento espiritual. Viver é receber informações de modo sensível ou espiritual. O que há de comum nestas duas formas é o receber (o paschein), o ser determinado por, o estar permanentemente aberto à determinação futura. No entanto, há uma diferença entre estas duas formas de informar-se. No caso da sensibilidade, há uma intervenção do dado exterior, enquanto o que caracteriza o espírito é que ele não se deixa violentar, o que se mostra no caráter não-necessário de sua resposta aos estímulos. Só se pode propriamente falar de espírito, ali onde há um informar-se, mas sem resposta necessária, de tal modo que neste caso se deve falar de um auto-informar-se: o espírito distingui-se da sensibilidade por ser soberano, livre, isento de violentação por parte do que vem a ele. O que o espírito capta não é simplesmente o ente, o outro, o que a mim se opõe e intervém a mim, mas o Eidos, a configuração fundamental de ente, o conteúdo de ser, o seu ser assim ou assado, seu ser, que não me violenta, não me toca, não me fere. Assim a sensibilidade tem a ver com o mundo dos entes, o espírito com o mundo das configurações, com a esfera do sentido dos entes, que não violenta o espírito na soberanidade de sua liberdade. Sensibilidade é, então, para Aristóteles, a determinação do próprio ser através da intervenção do outro, que na afecção estimula e provoca a recepção e com isto a percepção como uma conseqüência necessária da estimulação. Ao contrário, o informar-se espiritual significa auto-afecção do espírito através de criações do próprio espírito.

A liberdade fundamental que marca o ser espiritual é o ponto de partida para ulteriores diferenciações. A amplitude da vida sensitiva é sempre limitada, estritamente determinada, particularizada. Cada sentido é limitado a uma região da realidade a que ele tem acesso: a visão, por exemplo, não pode ver tudo. Se a luz é forte demais, ela não é mais percebida. Portanto, o sentido é sempre dirigido para algo totalmente determinado numa abrangência específica. Pensar, ao contrário, significa sempre pensar tudo (panta noein): ano existe região da realidade que esteja excluída do pensamento. Para Aristóteles, no pensamento estamos sempre voltados para o todo, pois o horizonte do pensamento é ilimitado: tudo pode ser pensado. Os sentido são essencialmente limitados e finitos; pensar só posso fazê-lo no horizonte do todo, pois pensar significa dirigir-se a algo enquanto sendo isto ou aquilo. Ora, o ser isto ou aquilo é o que constitui a essência das coisas. A essência é a configuração fundamental através do que algo distingue de tudo mais, ou seja, as configurações fundamentais são tais enquanto se distinguem umas das outras. Assim, quem pensa, pensa no horizonte do todo, e pensa exatamente enquanto situa este algo no horizonte da totalidade. Portanto, a abrangência do espírito é todo que tudo envolve, de tal forma que podemos dizer que o sujeito lógico das sentenças filosóficas, enquanto elas são expressão suprema da atividade do espírito, é a totalidade, o absoluto, enquanto a totalidade das esferas do real.

Dessa forma, o homem, enquanto ser espiritual, é o ser da abertura à totalidade: o horizonte de sua vida é o próprio todo. Tudo ele situa no horizonte da totalidade e o avalia a partir dela e com isto se faz livre de qualquer realidade determinada. O homem é total e por isto livre, isto é, capaz de tudo transcender. Ao mesmo tempo, ele é parente de tudo, pois em tudo ele descobre as estruturas fundamentais. Nada é estranho a ele, ele se descobre assim a si mesmo em tudo, o espírito subjetivo descobre em tudo o espírito objetivo. A racionalidade do homem é, em princípio, a possibilidade de detectar a racionalidade de todos os entes. Neste sentido, segundo Aristóteles, o homem é a possibilidade enquanto tal: já que ele pode captar a configuração de todas as coisas, ele não tem configuração, ou melhor, sua configuração é a possibilidade de todas as configurações. Assim, o espírito é, em primeiro lugar, apenas uma possibilidade, a possibilidade de uma tarefa histórica: a constituição do mundo dos pensamentos, das idéias, da mediação, ou seja, a possibilidade de tudo situar na presença do conceito, do símbolo, do sentido. Por esta razão, o ser do homem enquanto espírito não é ser que já esta aí, mas a autoconstituição permanente na constituição do mundo do sentido. O homem se constitui na medida mesma em que constitui o mundo enquanto sentido.

A nível de espírito subjetivo, há estados da mente que são imagens das coisas.  Para a comunicação destes estados de alma, onde o ser das coisas se articula, o homem se utiliza de palavras. Para Aristóteles não há, então, uma relação imediata entre a linguagem e os seres, pois há a iniliminável mediação dos estados de alma.

O homem, enquanto ser da palavra, é ser simbólico, já que a palavra é símbolo do real. A linguagem se situa na esfera do mundo sensível e do mundo espiritual: enquanto sensível ela é som, mas, enquanto realidade espiritual, ela é significante, isto é, situa na esfera da comunicação do sentido captado pelo espírito, o que levanta a questão que perpassa toda a tradição do pensamento ocidental de como conciliar ou como pensar como unidade de opostos a abertura universal do espírito com a particularização que é característica essencial da sensibilidade? A linguagem não é apenas uma reprodução do real, mas ela o significa, isto é, situa cada coisa dita na esfera do todo, que é horizonte próprio do espírito.

 

  • O homem, um se por natureza político

 

Para Aristóteles isto significa, em primeiro lugar, dizer que não posso pensar o homem fora do espaço do político (Pol. I, 1253 a 2, Et. Nic. I 1169 b 18 e ss.), que o espaço propriamente do espírito e, portanto, do direito, pois o homem é um ser político precisamente porque ele é o único a possuir linguagem (a 9) e o específico da linguagem é a manifestação do que é justo ou injusto (a questão da justiça é algo especificamente humano: Et. Nic. V, 1137 a 30), ou seja, o espaço de articulação dos fundamentos da ação  enquanto tal o espaço da razão. Numa palavra, o político é dado com o homem enquanto tal, enquanto ser que não é simplesmente arrastado para um fim previamente determinado (por isso a pura luta biológica pela sobrevivência não é política), mas que se decide por um fim, que toma posição frente ao fundamento de sua ação. Por isso não se pode pensar no homem como liberdade sem pensar em política, ao contrário do penam os modernos, que consideram a política o fruto de um processo de construção artificial e por isso objeto de um simples contrato. Na perspectiva  aristotélica, a política se revela como o mundo propriamente humano, em que o homem se compreende a si mesmo naquilo que tem de próprio.

O político constitui, assim, o espaço no seio do qual o homem pode conquistar-se como homem: nele reside a semente de um desenvolvimento que deve levar o homem à conquista de suas potencialidades, pois o homem é um ser livre e enquanto tal ele não é simplesmente conduzido a um fim através de um fundamento posto por ele ou diante do qual ele não se decidiu, mas se conduz a si mesmo através de uma decisão a respeito do fundamento legitimador de sua ação na direção de um fim.

O homem se define precisamente a partir de suas obras, ou seja, através de tudo o que ele faz como mediação para a conquista de seu próprio ser. Numa palavra, o homem é, na medida em que é capaz de efetivar suas aptidões e intenções. A vida do homem se revela, assim, como a chance de apropriação de seu ser, que não está dado no princípio a não ser como possibilidade. Para Aristóteles, aqui está algo fundamental, que distingue essencialmente do homem do animal: enquanto o animal é imediatidade, a efetividade do homem deve sempre mediar-se: sua vida concreta é a mediação de si mesmo, automediação.

No entanto, argumenta Aristóteles, enquanto ser de relações, o homem só se conquista na comunidade de tal modo que esta mediação de si se efetiva enquanto construção comum da vida comunitária, que se radica na busca conjunta de um fim comum. Ora, este fim é a realização do próprio ser do homem. Numa palavra, a automação implica sempre uma dupla tarefa: a construção da convivência e a explicitação daquilo que realmente une os homens, ou seja, do fundamento de sua comunitariedade. A vida do homem é, para Aristóteles, essencialmente, uma construção comunitária, e o comunitário não é algo simplesmente dado, mas constitui uma tarefa, a primeira de nossas vidas, e o homem é homem efetivo através da execução desta tarefa.

Há, em Aristóteles, duas formas fundamentais de realização do ser-com do homem: a primeira é a “convivência exterior”, que se fundamenta nas carências humanas que precisam ser satisfeitas, o que acontece através do trabalho e da tradição que transmite para as gerações subseqüentes as conquistas e invenções que efetivam nesta esfera o ser-com que caracteriza o homem. Embora nesta esfera a vida comunitária se revele como uma exigência da própria natureza, fica claro que o homem, mesmo aqui, em contraposição com o animal é o ser da mediação: através das obras técnicas ele realiza a historia de sua automediação como o senhor da natureza, ou seja, como ser vivo não simplesmente adaptado aos contextos vitais e à natureza, ms precisamente como aquele que ser vivo que transfigura os contextos vitais e a natureza situando-os na esfera das obras através das quais ele se conquista. Assim, a historia se revela aqui como processo de automediação do homem, pela mediação do mundo de suas obras.

Além das obras instrumentais, que efetivam o comunitário exterior, Aristóteles conhece as obras que são autotélicas, como por exemplo o pensamento (Met. VII, 1032 a 2 b), formas de vida que não se fazem em função de algo fora delas mesmas, mas que são portadoras de um sentido em si mesmas e enquanto efetivam a liberdade do ser humano. a consciência desta vida em comum realizada, autotélica e autárquica é o que constitui, para Aristóteles, a felicidade.

Para Aristóteles, a forma originária de construção comum do comunitário é a casa, isto é, a comunidade da satisfação das necessidades elementares (autoconservação e reprodução da espécie). A criação de novas famílias pelos filhos leva a casa a desenvolver-se em aldeias, onde através da diferenciação das funções de economia e segurança se podia realizar a satisfação das necessidades elementares com maior eficiência é já tentar iniciar a busca da efetivação de fins que superam a esfera da pura sobrevivência.

A pólis, que emerge da união de várias aldeias, possibilita que as diversas profissões e funções de uma comunidade se articulem como habilidades orientadas por procedimentos regrados. Deste modo, as relações entre os homens se configuram através de um sistema de instituições, que se constitui de assembléias, magistraturas e tribunais que devem tornar possível a vida em comum como convivência de iguais e livres. A pólis, enquanto comunidade maior, se constitui como conexão funcionalmente estruturada de todas estas habilidades e instituições públicas, que abrem o espaço para a efetivação da vida boa, da realização plena de todos os seus membros. A pólis emerge, então, para Aristóteles, como o lugar da possível humanização: sua finalidade é a realização plena do ser do homem e ela é, ao mesmo tempo, condição de possibilidade e ligar da realização da felicidade. Seu conteúdo é o próprio ser do homem enquanto tal e ela se distingue de todas as outras formas de vida social precisamente porque se radica na razão.

Pode-se, contudo, falar de uma tensão fundamental no pensamento de Aristóteles, entre teoria e política, pois, por um lado, só na teoria, enquanto atividade totalmente autárquica, o homem pode encontrar felicidade plena. Por outro lado, a política tem como tarefa criar as condições econômicas e culturais que liberem o homem para o que é, em princípio, não necessário, ou seja, a liberdade da teoria. Por isso, para Aristóteles, a teoria pressupõe ima alto grau de desenvolvimento da vida humana. Além disso, o homem não é puro ser razão, mas um ser vivo dotado de razão e enquanto tal permanece sempre dependente do ser-com-outros na pólis como forma suprema de vida comunitária. Assim, esta tensão ontológica de fundo entre vida política e vida teorética como duas formas de alcanças a felicidade é insuperável na vida humana.

 

  • O etos enquanto eticidade ordinária:a gênese “hermenêutica” da filosofia prática

 

A reflexão ética para Aristóteles não é negocio de uma razão isolada, autocentrada, mas de uma razão que se entende fundamentalmente como situada num contexto de interação e comunicação: o homem é o ser que só vem a si mesmo na comunidades. Isto significa dizer que toda ética parte de um etos, isto é, de uma forma de vida que foi configurada historicamente a partir das ações dos próprios homens e de que os diferentes indivíduos se apropriam. A ética emerge do etos, isto é, da conexão que foi historicamente articulada, de costumes, hábitos, leis, instituições, estruturas, numa palavra do mundo humano concreto construído pela práxis dos diferentes sujeitos. A filosofia prática parte de uma totalidade histórico-prática, que constitui a vida efetiva também daquele que reflete filosoficamente. É isto que constitui aquilo que O. Höffe chama o círculo da filosofia prática” ou círculo prático-filosófico: ela parte já sempre de uma eticidade efetiva e desemboca nela. Filosofia aqui se faz em função da própria práxis, ou seja, o fim do conhecimento não é simplesmente cognitivo – pois não se trata, em primeiro lugar , de conhecer esta totalidade prática – ,mas ético, isto é, ela pretende melhorar a eticidade vigente. O que aqui está em jogo é a vida ético-política do homem no que diz respeito a sua racionalidade. A ética pretende refletir a partir da vida histórica dos homens para melhorar a práxis que ela já encontra realizada e em cujo contexto ela também se sabe inserida. Neste sentido, ela conserva enquanto filosofia “prática” a intencionalidade própria da “filosofia”, ou seja, sua criticidade. O que se manifesta como próprio deste empreendimento racional é a consciência de seus pressupostos históricos, ou seja, sua gênese hermenêutica: a reflexão aqui sabe que não parte de um ponto fora (o sujeito crítico da modernidade por exemplo) do próprio contexto ético, que é seu objeto: ela mesma participa daquilo que ela conhece, está imersa num engajamento ético efetivo. A filosofia prática não é, assim, uma consideração do bem enquanto tal, mas filosofia que trabalha os “negócios” humanos em função da construção da própria humanidade do homem; ela decola, portanto, da práxis vivida nos contextos históricos específicos.

 

  • A passagem para o “discurso” prático: a ética enquanto reflexão crítica sobre os princípios do agir do homem

 

A ética enquanto reflexão filosófica sobre o agir humano, não parte simplesmente de axiomas, hipóteses ou postulados, mas da totalidade “ética”, enquanto o chão concreto da vida humana por ele mesmo construída: seus pressupostos são, portanto, para Aristóteles, em primeiro lugar, de ordem prática. Porém, enquanto filosofia, ela não via significar uma submissão ao vigente e, conseqüentemente, uma legitimação desta felicidade. Neste sentido, a filosofia prática continua filosofia, isto é, não explicação do fático, mas sua crítica a partir da tematização de uma normatividade. Filosofia é tomada de distância, transcendência sobre a felicidade, pergunta pela validade: aqui se trata especificamente da eticidade a ser conquistada através da mediação da reflexão crítica.

Para Aristóteles, esta reflexão constitui uma revolução na eticidade ordinária, pois a partir dela os membros de um etos não vão mais legitimar suas ações simplesmente a partir do próprio etos, ou seja, o que legitima a ação não vai ser mais ser o costume, o habito, a origem, o recebido da tradição, mas seus princípios mediados pela reflexão. O poder violento da reflexão está em destruir a eticidade ordinária enquanto ordinária, isto é, a totalidade prático-histórica do ponto de partida não vale mais simplesmente por sua existência, isto é, o próprio etos vigente perde o status de “fundamento de legitimação” das ações. Ora, a reflexão ética constitui, assim, uma mediação fundamental entre a politicidade e a racionalidade do ser humano: ela decola da politicidade efetivada e se estabelece como reflexão crítica desta politicidade com a intenção de levar seus membros a uma ação qualitativamente diferente, porque então não mais guiada pela simples tradição, mas pela própria razão.

Precisamente aqui está a analogia com a ciência teórica que busca os princípios primeiro-último do pensar: a ética quer ser a ciência fundamental na ordem do agir, ela também tem a pretensão de chegar aos princípios primeiro-último da práxis humana. Em tudo que ele faz, o homem busca um bem. Mas pertence à vida humana um bem supremo e Aristóteles o denomina, seguindo Platão neste ponto, de “ótimo”, o “bem em si mesmo”, “o mais poderoso entre todos os bens”, pois a totalidade da práxis humana deve haver um bem em função de que todos os outros bens são queridos. O bem supremo é, então, o fim para o qual se refere a própria natureza humana com todas as suas potencialidades e disposições. O que, em última análise, está em jogo em todo o lidar do homem com as coisas e as pessoas no mundo é a realização plena do homem enquanto tal, ou seja, a felicidade. No entanto, as ações concretas da vida humana têm inúmeros fins, que constituem o objeto de seus desejos, impulsos e vontade. Esta pluralidade de fins é constitutiva da vida humana fática e nela permanece oculto o fim último de sua natureza. Ora, a tarefa específica da reflexão ética é precisamente a tematização do bem supremo, pois o homem não é conduzido ao bem de sua natureza pela própria natureza, mas por conhecimento e vontade. No entanto, se todo bem da vida histórica do homem se fundamenta, em última instância, neste bem supremo, este mesmo, sob pena de cairmos num regresso ao infinito, não pode mais ser fundamentado. Neste sentido ele constitui uma evidência última enquanto fundamento de demonstração na ordem prática e nisto consiste precisamente a postura realista, que parte de pressupostos que, em si, são inquestionáveis, enquanto universais e necessários e por esta razão não precisam de fundamentação última. Neste sentido, ela parte de algo considerado “objetivo”, que no caso da ética, por exemplo, pode ser o impulso fundamental para a felicidade, como o bem supremo, como é o caso em Aristóteles. O bem enquanto tal é, em última instância, o objeto da vontade, embora os homens no dia-a-dia tenham como objeto de suas vontades aquilo que lhes parece bom. No entanto, o bem enquanto tal é a medida de todos os bens e, desse modo, inquestionável. Assim, a reflexão ética vê o que lhe vem ao encontro na Liz do bem enquanto tal, pois tudo, em última instância, é medido no que diz respeito a sua contribuição à felicidade do homem e é a partir daqui que se pode saber o que deve ser feito. A luz mesma é o horizonte indemonstrável a partir de onde se fundamenta todo bem concreto na vida ordinária.

 

  1. O modelo do empirismo

 

Introdução

 

O empirismo é aquela postura que se caracteriza, antes de tudo, por seu interesse no particular: por esta razão, sua tese básica é que o fundamento do conhecimento é a experiência, tanto a experiência sensível exterior quanto a auto-observação. O espírito, como vai dizer por exemplo Locke, é uma tábua rasa, que é preenchida pelas idéias. Os conceitos universais formados pela mediação de uma comparação dos dados dos sentidos através do que se extrai um traço comum, portanto produção do próprio espírito. Para Hegel, a questão fundamental do empirismo é sua teoria psicológica da origem do conhecimento humano sobretudo e sua universalidade. O problema fundamental é a questão da validade: o empirismo só reconhece a experiência como conte de legitimação, pois tais pesquisas psicológicas sobre a gênese do conhecimento não podem decidir sobre sua validade.

 

O utilitarismo como exemplo de uma fundamentação empirista da ética

 

  • A nova concepção de felicidade

 

Antes de tudo, é preciso notar que o utilitarismo moderno já surge num contexto onde se busca uma fundamentação do agir humano para além das instâncias tradicionais, ou seja, da tradição mesma, sobretudo, da religião. Trata-se agora, de fundamentar a ação humana a partir de sua própria experiência e de sua razão. Não se admitem mais instâncias de fundamentação que não possam ser submetidas à crítica, pois isto cai sob a suspeita de ser instrumento de opressão.

O utilitarismo parte da idéia de que o homem é fundamentalmente um individuo portador de necessidades, que precisam ser satisfeitas. Neste sentido, ele é um feixe de impulsos, interesses, necessidades, que pressionam  na direção de uma satisfação, cuja realização é subjetivamente recebida como prazer e a não-realização como dor. Estas constituem das duas realidades básicas da vida humana, a partir de onde todas as suas ações são compreensíveis. Trata-se de uma dimensão ineliminável da vida humana, que determina o mais profundo de sua ação. Por esta razão, o hedonismo, que marca a postura utilitarista pode ser interpretado numa dupla perspectiva: em primeiro lugar, na media em que é considerado como princípio supremo para o julgamento da retidão das ações, é um hedonismo “ético”; por outro lado, ele pode ser considerado também como a estrutura fundante da motivação das ações humanas, então se trata de um hedonismo psicológico. Já em Hobbes o princípio de determinação das ações não era a razão humana, mas precisamente a dependência radical da natureza através dos sentimentos de dor e prazer. É a partir dessa concepção de homem que se pretende articular um “sistema de leis racionais” que tem como fim exclusivo e critério para sua legitimação a consecução da felicidade maior para todos os implicados.

Para Bentham, a experiência ética fundante é a convicção da humanidade de que a ação verdadeiramente reta é aquela onde se busca não só a felicidade do indivíduo, mas a de todos. A moral, então, é a arte de orientar as ações dos homens de tal modo que se possa conseguir a maior soma de felicidade. A própria legislação estatal tem a tarefa de indicar as ações úteis para a vida em comum e esclarecer os indivíduos a respeito de que, buscando seus próprio interesse, eles estão também promovendo o bem dos outros. O fim, então, da moral é não limitar a felicidade a determinadas camadas da sociedade, mas torná-la possível para todos. A questão básica aqui é como fundamentar este universalismo a partir da experiência, no caso específico da experiência de base desta postura que é o homem como ser de necessidades.

Para O. Höffe, o que tanto Bentham como Mill não perceberam é que a afirmação de que o homem busca o prazer e evita a dor é uma sentença propriamente analítica, enquanto que empírica é a questão em que consistem propriamente o prazer e a dor.

Ora,  a forma dos interesses e seu conteúdo permanecem por dois motivos fundamentalmente abertos: em primeiro lugar, porque é impossível determinar, a priori, onde é possível realizar a satisfação, portanto só a experiência pode responder a esta questão de tal maneira que uma ética utilitarista aponta de si mesma para uma pesquisa empírica a respeito do prazer e da dor, que aliás não é mais ética, mas deve ser feita seguindo as prescrições das ciências empírico-analíticas. Aliás, quando no horizonte do utilitarismo se fala em razão se trata sempre da “razão moderna”, que encontra na ciência moderna da natureza seu paradigma e é a partir de seus procedimentos que se deve fazer o cálculo hedonístico, a aritmética moral do prazer e da dor. É inevitável, nesta perspectiva, uma quantificação da felicidade.

Em segundo lugar, a determinação apriórica é impossível, porque, em última análise, cada um é critério de felicidade para si mesmo, ou seja, não é possível uma determinação universal do que seja a felicidade. Neste senti, o rigor aqui só pode significar para a multiplicidade dos interesses em jogo na vida humana, pois é este o princípio que está na raiz das motivações das ações humanas. A questão central aqui é, do ponto de vista ético, a eliminação da questão da validade: prazer é algo necessariamente relacionado ao respectivo indivíduo. Se algo deve ser feito ou não, se algo traz prazer ou dor é a questão exclusiva se situamos a ética a ética no horizonte da dor e do prazer. Ora, isto desemboca numa concepção subjetiva do que seja correto pi não. O único critério de avaliação permanece a medida de prazer, que é o fundamento da conduta individual e social.

Além disso, faz-se aqui necessário distinguir entre o conceito de felicidade, como ele foi pensado pela tradição e a postura empirista. Para Aristóteles, como vimos, a felicidade é o fim último em função do que todos os outros fins são buscados e significa precisamente a realização plena e definitiva do ser do homem enquanto tal. Para p utilitarismo, a felicidade é algo empírico-pragmático, ou seja, o resultado de uma espécie de balanço da maior possibilidade de prazer e da eliminação da dor. O aspecto quantitativo é sempre o fundamental e o decisivo, levando-se em consideração os diferentes fatores que estão em jogo em sua realização: intensidade, duração, proximidade, certeza, fecundidade, pureza, etc. Assim, o conceito de felicidade é essencialmente em conceito empírico, aberto sempre a uma superação da satisfação apenas momentânea dos interesses dos indivíduos em questão como também das próprias possibilidades metodológicas do conhecimento empírico do prazer e da dor.

 

  • A forma empirista de fundamentação do princípio básico da ética

 

  1. Höffe fala, com razão, de um déficit em fundamentação mo pensamento empirista. Bentham pretende não simplesmente estabelecer o princípio fundamental, mas fundamentá-lo, só que o eu ele entende por fundamentação é a demonstração por dedução a partir de sentenças primeiras. Ora, sendo o princípio precisamente princípio, isto é, uma sentença fundante ou mesmo a sentença fundante enquanto tal, então é impossível demonstrá-lo. O único que ele faz é dizer que todos aqueles que o nega,, dele se utilizam: trata-se aqui de uma demonstração através de uma contradição performativa? Sem dúvida seria o caso, só que Bentham não tem clareza do que realmente se trata. Ele chega a recusar qualquer tipo de prova direta, mas o que consegue articular não passa de uma demonstração por dedução. Além disso se trata sempre ao mesmo tempo de uma verdade analítica e empírica, o que manifesta uma falta de consciência clara da diversidade dos discursos em questão.

Um problema subseqüente é a falta de uma formulação rigorosa do próprio princípio. Bentham compreende o princípio de utilitarismo como “aquele princípio que aprova ou desaprovo qualquer ação, segundo a tendência que tem em aumentar ou diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo”. Como entender isto? As disputas que ainda persistem fazem possível duas interpretações ou talvez um conflito entre duas “medidas”, ou seja, uma para as questões privadas e outra para as questões públicas (coletivas). Numa perspectiva da psicologia hedonista, só a pessoa privada pode estar em questão, enquanto o bem estar da comunidade é problema unicamente do governo. Para outros, o princípio do utilitarismo não é propriamente uma exigência ética, mas apenas um princípio prudencial. De qualquer modo, permanece uma aporia fundamental deste princípio: a conciliação da dimensão individual e da dimensão social.

  1. Höffe é de opinião que no utilitarismo se dá o passo fundamental de passagem para além de um egoísmo ético na direção de uma ação que se compromete com o bem-estar de todos. Neste sentido, é enorme a influência do utilitarismo em nosso tempo, onde a religião, a metafísica e a tradição como um todo não gozam mais de reconhecimento universal: precisamente numa sociedade em crise em relação a seu rumo fundamental tem chances um princípio moral, que não radica sua legitimidade a partir de autoridades não mais reconhecidas e além disso este princípio corresponde a uma das profundas aspirações dos seres humanos, a saber, o desejo de felicidade combinado aqui com um elemento fundamental da mentalidade do homem moderno, que é precisamente o controle, a dominação sobre os fenômenos, que faz aparecer como possível afinal a realização do grande sonho de felicidade para todos.

O utilitarismo se caracteriza, entre as posturas éticas, por tentar conciliar o normativo (o princípio ético básico) e o empírico (o cálculo hedonístico), pois uma fundamentação moral utilitarista não pode realizar-se em referência ao empírico, uma vez que são consideradas as conseqüências das ações e sua significação para o bem-estar das pessoas em jogo, o que significa abertura para as necessidades, interesses e fins dos outros.

 

  1. O modelo do ceticismo

 

Introdução

 

O ceticismo pode ser, em primeiro lugar, considerado como uma posição de radicalização da postura empirista: já que tudo provém da experiência e a experiência só nos fornece dados, sempre particulares e continentes, então, em princípio, tudo é questionável, tudo é contingente. Nada há de absoluto, nada existe de verdadeiro. Como vu Hegel, a única coisa que permanece segura é a própria subjetividade. Não é, portanto, a razão, mas a vontade a instância última de decisão sobre os valores e sobre a verdade. Não existindo verdade, nenhuma instituição pode levantar a pretensão de fundamentação. Todas elas são originadas da junção de vontades individuais a partir de uma contrato. Nem a moral nem o direito podem ser fundamentados: valem enquanto são estabelecidos. Tudo é relativo: esta é a tese fundamental da radicalização do empirismo.

 

O ceticismo enquanto negação de qualquer racionalidade na ética

 

A questão fundamental neste contexto é se as sentenças éticas são propriamente juízos, ou seja, se elas podem levantar a pretensão à verdade, isto é, uma legitimação racional. O que caracteriza o ceticismo ético é a proposta negativa a esta questão de base. Decisões a respeito de normas se situam propriamente na esfera do irracional. Já foi esta, na modernidade, a posição de D. David Hume para quem sentenças verdadeiras são as que exprimem acordo com a realidade: que se situa o campo da razão, pois a única fonte de conhecimento são a experiência e a observação, de tal modo que o conhecimento das ciências modernas da natureza é o paradigma de todo e qualquer conhecimento. Assim, o método experimentado e testado nestas ciências de deve ser também aplicado à filosofia, de modo especial à ética. Todo o campo do pensamento conceitual é sempre reconduzido à percepção sensível, o que significa dizer que todo o pensamento, em última instância, se reduz à representação sensível e não há conhecimento que ultrapasse o nível da experiência.

Daí a conclusão de Hume que é central para sua posição: “Todos os objetos da razão ou da investigação humana podem ser divididos naturalmente em duas espécies, a saber: relações de idéias e questões de fato. À primeira espécie pertencem as ciências da Geometria, da Álgebra e da Aritmética; e, numa palavra, toda afirmação que seja intuitiva ou demonstrativamente certa. …As proposições desta espécie podem ser descobertas pela simples operação do pensamento, sem dependerem do que possa existir em qualquer parte do universo. Ainda que jamais existisse um círculo ou um triangulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para sempre sua certeza e evidência”. No caso do segundo tipo de conhecimento (matters of fact), parte-se sempre de fatos dados da experiência, e na base da lei de causalidade passa-se a outros fatos. Só que a lei de causalidade, enquanto um conhecimento universal, nunca pode ser provada, uma vez que a experiência só nos dá o particular. Sua necessidade não pode ser, portanto, de ordem lógica. Todo o nosso conhecimento universal reduz-se, então, ao hábito.

Em se tratando de afetos, atos de vontade e ações não tem levantar a questão da adequação à realidade. Razão e vontade são duas dimensões irredutíveis e daqui se segue a tese da dicotomia total entre razão e moral: as regras da moral não podem ser conseqüências da razão, mas têm a ver com os sentimentos. A pretensão de Hume é desligar a moral de qualquer fundamentação metafísica ou religiosa e construí-la unicamente a partir da experiência enquanto uma moral natural. Ora, o critério fundamental de nossos julgamentos morais é se as ações são úteis ou agradáveis.

Hume leva, também, até as últimas conseqüências a ética hedonista na medida em que para ele a moral só fundamenta o valor ético na satisfação psicológica e de nenhum modo  levanta a pretensão de absolutidade e universalidade que este valor expressa na tradição.. mesmo porque, em última instância, não há a liberdade de escolha, o que torna impossível falar de ética em sentido estrito. Nossos juízos morais são, na realidade, revelação do que sentimos diante de determinadas ações.

Esta ligação entre ética e moções foi mais rigorosamente articulada na obra fundamental fr Ch. L. Stevenson, Ética e linguagem. O que constitui para ele o específico da linguagem ética é a “significação emotiva”, uma vez que o uso desta linguagem tem a finalidade de exercer influência sobre o comportamento dos outros através de sugestões. Proferimentos éticos são, portanto, instrumentos de que nos utilizamos para tentar mudar as atitudes dos outros, visto que os fundamentos aduzidos para legitimar estas sentenças não passam de meios de influência psíquica, pois a linguagem é, essencialmente, instrumento de influência psicológica. Ela é usada para provocar mudanças mentais nos ouvintes, para influenciar o comportamento alheio, portanto é interpretada behavioristicamente. Quando se trará de situações cognitivas, Stevenson chama isto de significação descritiva; no caso de sentimentos, emoções e atitudes, trata-se, então, de significação emotiva, pois ela se destina a suscitar nos ouvintes  reações situadas no domínio dos sentimentos e das atitudes e que podem ocorrer de forma independente do significado descritivo. “Exemplificando, a palavra ‘democracia’ admite, para nós, um significado descritivo semelhante ap significado emotivo, porém, alterou-se fundamentalmente”. Por esta razão, a ética nada tem a ver com a ciência e não pode esperar que o avanço do conhecimento científico desemboque num consenso ético.

Em nossos dias, esta postura é retomada numa situação extremamente grave, pois hoje a própria planetarização da civilização técnico-científica confronta todos os povos da Terra com questões que exigem uma solução mundial, como, por exemplo, o desafio gigantesco do empobrecimento de enormes contingentes de população do mundo. O cenário do mundo de hoje nos oferece um espetáculo que provoca nossa consciência ética: por um lado, uma crescente acumulação de riquezas e seu consumo com tendências ilimitadas; por outro lado, a miséria e opressão de milhões de seres humanos. Para enfrentar esta problemática necessitamos de uma macroética e, no entanto, se considera hoje mais do que nunca impossível fundamentar o saber ético, que não tem lugar entre os saberes reconhecidos. A possibilidade de um saber responsável, isto é, legitimado, de alguma forma, através de argumentos, se limita às ciências formais, lógico-matemáticas e ao campo das ciências fatuais dos fenômenos de nossa experiência. Normas morais se situam fora destas esferas, portanto seu conhecimento está fora da esfera do conhecimento objetivo, portador de validade intersubjetiva e se reduz, assim, a uma posição inteiramente subjetiva, isto é, ao campo das emoções, dos sentimentos, das decisões puras sem qualquer legitimação possível.

Além disso, temos hoje uma consciência mais profunda da situacionabilidade como constitutivo fundamental da vida humana. Sabemos que vivemos em mundos históricos diferenciados, onde uma multiplicidade de fatores influenciam as ações dos sujeitos inseridos nestas totalidades de tal modo que qualquer universalismo parece incompatível com o fato fundamental da pluralidade na vida humana. A conclusão desta consciência desenvolvida da historicidade é a historificação da própria razão: não há uma razão universal, mas razões diferenciadas, numa concorrência ilimitada de sentidos regionais e, conseqüentemente, não é possível o estabelecimento de qualquer norma que ultrapasse a esfera de sua racionalidade específica. A razão humana fragmentada nas múltiplas razões é incapaz de fornecer orientações universais e definitivas sobre nossas ações. Ela se torna, assim, incapaz de ser a instância fornecedora de uma orientação universal para nos confrontarmos com os dilemas igualmente universais com que se defronta a humanidade de hoje. A razão não pode mais dizer qualquer coisa de sério diante das grandes questões que atormentam a humanidade de hoje. estamos presos a nossas escolhas, que não podem mais ser fundamentadas. Aliás nossa própria sensibilidade histórica não nos imuniza contra a tentação do estabelecimento de normas universais?

 

  1. O modelo transcendental

 

Introdução

 

O pensamento transcendental se entende , antes de tudo, como uma confrontação com o relativismo e com o caráter contraditório do ceticismo de tal modo que sua pretensão mais profunda é a restauração da razão. A posição básica é a afirmação de que qualquer proferimento, mesmo o do relativista e o do cético, sempre pressupõe verdade e enquanto tal se autodestrói, quando nega a verdade explicitamente, como é o caso cético. Neste contexto, o pensamento transcendental retoma a velha tarefa da filosofia e a reinterpreta: a filosofia tem  ver com a explicitação do “fundamento” sempre pressuposto e por esta razão ineliminável do pensamento e da ação. Ora, para o pensamento transcendental este fundamento é subjetivo, a estrutura ineliminável da subjetividade finita. No entanto, pode-se dizer que esta subjetividade é, também, de algum modo, objetiva na medida em que ela é condição de possibilidade de toda pretensão de verdade: ela é o fundamento da validade do conhecimento objetivo. O sujeito só é sujeito enquanto obedece lógicas, que por sua vez garantem a necessidade e a universalidade do conhecimento objetivo. V. Hösle denomina esta posição, com Dilthey, de “idealismo subjetivo”, porque o que aqui é ineliminável são as estruturas do sujeito, que determinam o objeto.

 

A fundamentação transcendental de um princípio de moralidade

 

A ética transcendental vai contrapor-se fundamentalmente a todo tipo de relativismo, ceticismo e dogmatismo em ética. Por esta razão, Kant vai centrar suas considerações éticas ma determinação do princípio de validade das normas de nossas ações: numa palavra, sua ética está preocupada não em estabelecer normas para o agir humano, mas em “fundamentar um princípio moral” no sentido de uma regra suprema de discernimento e julgamento para o agir ético dos homens. É neste sentido que a filosofia transcendental pretende estabelecer com rigor a tarefa específica da reflexão ética: as normas se gestam na história. O que o filósofo pode oferecer é uma reflexão sobre a normatividade das normas, ou seja, o estabelecimento de uma princípio de moralidade à luz do qual se possa julgar a validade das normas que levantam a pretensão de regrar as ações humanas; na linguagem de Kant, das “máximas” de nossas ações. Não é, portanto, tarefa da ética refletir diretamente sobre nossas ações, mas sobre sua motivação: as máximas. Por esta razão a pergunta central neste contexto é: que princípio justifica as máximas do agir humano?

Para Kant, as normas que regem as ações são de dois tipos: umas são puramente subjetivas e outras são também objetivas, isto é, têm validade universal, de tal modo que a grande questão é descobrir um princípio capaz de discernir entre um e outro tipo de máximas. Para O. Höffe, as máximas em Kant possuem as seguintes características: 1) elas são determinações da vontade, portanto não se referem a acontecimentos puramente naturais, mas têm a ver com ações de um ser livre, que põe e busca realizar fins; 2) as máximas são sentenças de base, portanto elas contêm regularidades que unificam os motivos da vontade, construindo, assim, na variedade imensa dos processos de ação, uma certa ordem e continuidade; 3) máximas são regras que devem sua validade à posição explícita e ao reconhecimento das pessoas em questão. Nesse sentido, elas são regras autopostas e de nenhuma forma se assemelham a elementos de descrição causal ou intencional de fatos. São, portanto, regularidades autoconstruídas; 4) no entanto, elas não são simplesmente regularidade de nossas ações, mas uma regra para os motivos de determinação de nossa vontade. Nossa ação está sempre inserida num contexto natural e intersubjetivo, que não foi constituído pela vontade do sujeito e que nem é captado, em sua totalidade e complexidade, por ele enquanto sujeito empírico. Por isso, para Kant, a eticidade de nossas ações se mede pela qualidade da motivação de nossa vontade; 50 é importante ter presente que no caso das máximas, e que estão em questão na reflexão ética, se trata sempre das “motivações últimas” referentes aos diversos campos da ação humana, que por isto têm várias outras regras subordinadas a si.

Segundo Höffe, elas ocupam uma posição intermediária entre os propósitos comuns imediatos do cotidiano e os grandes projetos de vida. As máximas são não propósitos secundários ou derivados, mas determinações fundamentais da vontade para os campos específicos da vida humana. Elas exprimem a forma de conduzir a vida, mas relacionada com o aspecto determinado, com situações típicas da existência. Elas são, assim, z tradução da orientação fundante de uma vida especificada de acordo com um campo determinado da vida. Neste sentido, as máximas são o critério normativo a partir de onde, através de um processo de discernimento, pode-se chegar a regras particulares e assim concretizar as máximas de acordo com as diferentes situações. Então se trata, na ação ética, de uma processo de mediação entre as máximas, o princípio normativo último de um determinado campo da realidade e determinadas formas de situação da vida concreta. Assim, emergem as “regras práticas”, que são a concretização das máximas nas diferentes situações concretas de tal modo que se pode dizer, segundo a interpretação de Höffe do pensamento kantiano, que um juízo ético concreto contém sempre dois momentos: de um lado a máxima universal e invariável de um determinado campo da realidade e, do outro, as situações contingentes e particulares, o que faz com que nossas ações sejam sempre diversas e ao mesmo tempo portadoras de uma quantidade comum, o que nos livra de qualquer relativismo, por uma lado, mas, por outro lado, abre espaço para a criatividade (livrando-nos do dogmatismo), uma vez que a máxima nos fornece apenas o esboço universal da ação, exigindo um processo posterior de determinação, que é tarefa específica da “faculdade do juízo”: elas oferecem ajudas de orientação, que não dispensam o sujeito do trabalho de discernimento nas diversas situações.

A tarefa da reflexão ética transcendental em Kant consiste, acima de tudo, em estabelecer um “critério de moralidade” precisamente para estas máximas, ou seja, trata-se da questão do “princípio de justificação das máximas” e com isto Kant se contrapõe tanto ao ceticismo de Hume quanto à fundamentação empirista vigente no pensamento inglês com Hutcheson e Schatesbury precisamente por admitir uma “legitimação racional” destas máximas. Há na ética transcendental uma concentração numa questão fundamental, ou seja, ela é uma ética da justificação do princípio de legitimação das máximas de nossas ações. O homem, como ser histórico, já se encontra sempre inserido em mundos específicos que lhe transmitem as máximas de suas ações e, mais do que isto, todo um conjunto de regras práticas que se traduzem em modos de comportamento e instituições. É este conjunto que constitui o “mundo vivido”, o ethos específico de cada comunidade humana. Não compete à filosofia, propriamente, o estabelecimento destas máximas e suas regras subordinadas, mas a fundamentação, via reflexão transcendental do “princípio-fundamento” a partir de onde se pode discernir a validade destas máximas e é precisamente esta reflexão que gesta liberdade na vida humana na medida em que torna possível à vontade determinar-se única e exclusivamente a partir de si mesma, tendo em si mesmo a razão de sua determinação.

Neste sentido, este princípio faz com que o homem passe de sua particularidade bio-histórica para sua humanidade enquanto tal: o princípio moral é o princípio de universalização, que torna a vontade humana livre de qualquer injunção específica, portanto capaz de determinar-se a partir de si mesma, autonomamente. O princípio moral possibilita a transcendência do homem sobre qualquer contingente, seja o complexo de necessidade que provêm de sua natureza biológica, seja a determinação proveniente de seu mundo sócio-histórico: trata-se de possibilitar a liberdade da vontade frente aos impulsos da natureza e das injunções histórico-sociais. Assim, as máximas, que se formaram historicamente e que foram transmitidas de geração em geração como modelos de ação a serem reconhecidos, perdem sua “evidência” e, conseqüentemente, sua aceitabilidade espontânea, transformando-se em material de uma acareação crítica a partir do princípio moral fundamental: o homem se torna capaz, a partir de si mesmo, de dar as razões do seu agir e, sobretudo, capaz de uma abertura ilimitada aos outros seres humanos, porque agora suas máximas de ação não são apenas, quando resistem ao teste, criações particulares de mundos históricos-contingentes, mas a expressão de uma vontade universal: o objeto da reflexão crítica é a capacidade de universalização das normas de ação. As máximas, enquanto criações históricas, podem perfeitamente ser a expressão de privilégios, de dominação e opressão entre os grupos humanos. Claro que a reflexão transcendental não pode eliminar a situacionabilidade fundamental do ser humano e arrancá-lo da história, mas pode fornecer a ele um princípio de discernimento que seja capaz de detectar a racionalidade destas máximas e, assim, tornar possível uma ação que se gere autonomamente a partir dos motivos legitimados pela razão. O caráter éticos das ações humanas significa, portanto, um apelo à transcendência e a possibilitação da autonomia da pessoa. Esta transcendência nega os contingentes como fundamento da ação humana e é precisamente a distância que torna possível a liberdade enquanto autoposição do sujeito em sai determinações. Neste sentido, a reflexão transcendental pode ter dita ela mesma uma emancipação formal, que pretende possibilitar uma ação verdadeiramente livre no agir histórico dos homens.

Em nossos dias, esta postura transcendental recebe uma continuidade e, ao mesmo tempo, um repensamento na pragmática transcendental. Em primeiro lugar, Eça pretende não só continuar, mas radicalizar a reviravolta transcendental do pensar efetivada por Kant, que significa um patamar reflexivo não mais recusável sob pena de perdermos a consciência crítica que caracteriza a filosofia depois de Kant. Mas ela pretende reformular o pensamento transcendental a parir da combinação da reviravolta transcendental com a reviravolta lingüístico-pragmática do pensamento ocorrida em nosso século.

Isto vai provocar duas mudanças essenciais no paradigma do pensamento transcendental como ele foi elaborado por Kant: 1) abre-se a possibilidade efetiva de uma fundamentação última do princípio fundamento da moralidade, o que não aconteceu em Kant e que se fará através da distinção entre os dois tipos de fundamentação: a fundamentação por dedução, usada nas ciências e no saber comum, e a fundamentação reflexiva, própria da filosofia; 2) através da mediação da linguagem faz-se uma passagem de uma “filosofia da subjetividade”, típica do pensamento transcendental clássico para uma “filosofia da intersubjetividade”, respondendo a uma dos apelos mais fortes do pensamento pós-Hegel.

 

  1. O modelo dialético

 

Introdução

 

A postura dialética, ou idealismo objetivo na terminologia de Dilthey, quer entender-se em primeiro lugar, como uma radicalização do pensamento transcendental na medida em que defende uma recuperação da razão que não seja subjetiva, mas também objetiva. Como a posição transcendental, ela admite verdades sintético-aprióricas, só que para ela se trata de algo que precede à razão subjetivo-intersubjetiva e à natureza. Esta razão é a identidade de subjetividade e objetividade, que não só precede todo conhecimento finito, mas também todo ser finito. Aliás acredita ser a única posição capaz de dar uma resposta a uma pergunta simples, mas fundamental, feita por qualquer um que reflete: como é possível que o pensamento apriórico, ou seja, o pensamento que opera sem relação ao mundo exterior, possa captar a realidade? Justamente porque a natureza não é totalmente estranha ao espírito como pensa a filosofia transcendental, pois ela participa do mesmo princípio em que participa também o espírito.

  1. Hösle, utilizando a terminologia diltheyniana, chama esta razão de “objetiva” para exprimir que ela é, no sentido pleno da palavra, e não se reduz nem à natureza, nem à consciência subjetiva, nem ao espírito intersubjetivo. A tese fundamental do idealismo objetivo é que esta razão não constitui uma esfera de ser al lado de outras, mas é a essência de todas as coisas, enquanto fundamento último de todos os seres.

Ela está intimamente presente em tudo sem eu nada possa esgotá-la: ela está em todas as coisas, mas em cada uma delas de uma maneira específica sem que possa identificar-se plenamente com qualquer uma delas. O específico da filosofia consiste em ver a razão universal no íntimo da cada realidade. É aqui, precisamente, que reside a diferença entre a filosofia, quando ela considera um campo específico da realidade e as ciências, ou seja, a filosofia detecta a presença da razão universal neste campo específico da realidade global. A razão universal presente em cada particular e, ao mesmo tempo, transcendendo a todos eles. Esta razão universal é a suma de todas as verdades aprióricas, que determinam o ser do mundo e que são captadas pelo pensamento finito no retorno a si mesmo. Por esta razão, ela é, igualmente. Imanente e transcendente a tudo. Todas as coisas participam em algo que não é pelo pensamento humano, mas em que o próprio pensamento também participa.

 

A fundamentação dialética da ética

 

O idealismo objetivo se articula como um pensamento sintético entre realismo (a afirmação de uma natureza independente do pensamento subjetivo ou intersubjetivo) e idealismo subjetivo (afirmação da autonomia do pensamento): ele entende a razão como identidade da subjetividade da objetividade e isto significa dizer que ela não é só o fundamento de todo ser, mas também de toda pretensão de validade de todas as normas e de todos os valores, de tal modo que o normativo e o ideal transcendem todo o fático (natureza, espírito subjetivo e espírito intersubjetivo). Trata-se aqui, acima de tudo, de tematizar uma síntese entre objetividade e subjetividade, que é, para V. Hösle, a preocupação fundamental, por exemplo, na ética platônica.

Na Politeia, Platão expõe, em primeiro lugar, as duas posições contrapostas: 1) a postura objetivista-utilitarista: a ética dos ancestrais (362 e 4 e ss.), dos poetas da religião (estas são as três autoridades, que defendem o conceito tradicional de justiça), empenha-se pela justiça em virtude de suas conseqüências: boa posição na sociedade, alta cotação nas opiniões dos outros, recompensa por parte dos deuses no além ou neste mundo através de muita descendência (363 a-d). Segundo esta concepção objetivista-utilitarista, a justiça não é um bem imediato, um bem em si, mas só é desejável em virtude de suas conseqüências. Isto significa dizer que ela está afastada do sujeito e é constituída por outros, isto é, pelos deuses ou pela sociedade. Numa palavra, o fim da ação são bens exteriores ao próprio sujeito; 2) a postura subjetivista da sofística. Aqui se põe, no primeiro plano, a referência à subjetividade: justo é quilo quem imediatamente e sem referência a outros, traz alegria ao sujeito consciente de si mesmo. A fonte da justiça se situa em sua virtude subjetiva. Há, aqui, portanto, nitidamente, um deslocamento da eticidade para o sujeito e este se emancipa de um bem externo que se impõe a ele como um absoluto, emancipação, aliás, que tem um alto preço, a saber, a perda em substancialidade e no valor interno da virtude em razão da reviravolta do conteúdo no contrário. A virtude se torna algo puramente subjetivo: ela pode ser agradável ao sujeito, mas é criminosa porque destrói qualquer universalidade, comunidade e por esta razão aniquila a própria pólis que se radica na eticidade.

A síntese platônica vai consistir, primeiro lugar, na afirmação de uma homologia entre o espírito subjetivo e o espírito objetivo, entre o indivíduo e a polis, numa palavra, a tese básica é que na alma individual e no Estado são constitutivas as mesmas leis ontológicas. Enquanto a alma se realiza imediata e verdadeiramente (esta realização é a justiça), ela cria um Estado racional e justo. A justiça é interpretada por Platão como algo imanente, explicável a partir do sujeito, o que o liga à posição sofística: ele fornece para a justiça uma fundamentação interior. Por outro lado, esta subjetividade da justiça é altamente objetiva, pois a subjetividade da alma, que se realiza, se radica num projeto ontológico da doutrina dos princípios.

S doutrina dos princípios levanta a pretensão de ser uma ontologia universal: ela abrange tanto a natureza como o espírito subjetivo e objetivo. A unidade entre subjetividade e objetividade no mundo das idéias garante que, mesmo na separação exterior de ambos no mundo empírico, um se adeqüe ao outro. O Estado e o homem, quando pensados verdadeiramente em si mesmos, são sempre um no outro, correspondem um ao outro, estão de acordo um com o outro, porque têm a mesma origem. A famosa correspondência em Platão entre as partes da lama e os diferentes grupos do Estado, por mais problemática que seja em seus detalhes, corresponde a esta tese básica, o que também torna possível a unidade entre a ética individual e a ética política. Por esta razão, em toda sua obra, Platão passa constantemente de uma virtude para a outra (virtude individual e virtude política), o que se pode chamar de sua origem comum: pólis e psyché são homólogos.

Precisamente o pensamento especulativo da unidade entre indivíduo e pólis, esta unidade de subjetividade e objetividade no campo do espírito finito, é que constitui a unidade da ética objetivista e da ética subjetivista: a ética é para se fundamentar a partir da subjetividade, mas esta subjetividade é, também, objetiva.

Esta fundamentação dialética da ética vai ser retomada na modernidade por Hegel, para quem um dos problemas fundamentais é o da objetivação da pura interioridade, ou seja, da passagem da moralidade para a eticidade de tal modo que, para ele, as instituições éticas são, e, relação ao indivíduo, de maior valor. É a partir daqui que Hegel critica a teoria contratualista da família e do Estado, como também sua fundamentação naturalista. Para ele, o Estado só pode ser fundamentado através da subjetividade, mas não numa subjetividade particularista e sim racional. É precisamente nestas auto-objetivações que o indivíduo para Hegel chega à sua verdade e se liberta de seus impulsos, suas reflexões para uma liberdade substancial. Se Hegel foi capaz desta síntese, é ainda hoje objeto de discussão, o que não invalidada a tese de que esta é sua postura fundamental.

Hegel partia da própria questão, que decorria da ética transcendental de Kant, onde se faz uma distinção radical entre o mundo da natureza, objeto das ciências, e o mundo da liberdade, que é o mundo do sujeito. Ocorre que as ações éticas devem poder realizar-se na natureza. Se os dois mundos são completamente disparatados, não há uma saída pensável. Hegel encontra uma resposta precisamente no idealismo objetivo: o ser não fundamenta o dever-se, nem o dever-se o ser, mas ambos, ser e dever-se (natureza e liberdade, objetividade e subjetividade), são principiados de uma esfera ideal, normativa.

Para Hösle, só o idealismo objetivo é capaz de nos dar critérios materiais (não apenas formais, procedurísticos, como por exemplo fornece a ética do discurso) para poder distinguir um consenso racional de um consenso irracional, pois aqui se pode pensar uma hierarquia de bens e valores, uma vez que bens e valores são portadores de racionalidade, de tal modo que a hierarquia de valores é a priori e, portanto, não depende de um consenso fático.