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O DUALISMO DAS CIDADES – Patrus Ananias

O DUALISMO DAS CIDADES

Patrus Ananias *

O problema da violência no Brasil tem, entre outras causas e conexões, o crescimento intenso e desordenado das cidades, especialmente nas regiões metropolitanas nas últimas décadas. O poder público, nas três esferas  União, estados e municípios , não acompanhou a explosão demográfica urbana, e as populações pobres ficaram, em parte ou totalmente, privadas dos espaços, serviços e equipamentos públicos de boa qualidade, inclusive, na área de segurança pública e do direito à vida. Surgiram as áreas urbanas clandestinas, não integradas juridicamente no planejamento e ações administrativas das cidades; consolidou-se a dicotomia Centro versus periferia. Surgiram os condomínios fechados, novas e agressivas manifestações da segregação social.
Precisamos reconhecer, com coragem e lucidez, que a violência no nosso país não é fenômeno recente. Para manter o rigor histórico, foi a marca do próprio processo de colonização, com o genocídio indígena e o horror da escravidão. Os pobres e os caboclos sertanejos jamais foram acolhidos no leito da nacionalidade e da cidadania e, tivemos, nos anos 30 do século 19, a eclosão das guerras sertanejas. A repressão foi sempre brutal, sobretudo quando os rebeldes eram negros, índios ou pobres. Com efeito, tivemos, desde o século 18 às primeiras décadas do século passado, o fenômeno do cangaço, ligado em relação de amor e ódio ao coronelismo. O pano de fundo são sempre o problema fundiário e a concentração de terra e de renda.
A questão agrária não-resolvida desdobrou-se no processo de urbanização, que se intensificou no país, nos últimos 50 anos, sem qualquer projeto estratégico de inclusão social. Os deserdados da terra, os filhos que a pátria não acolheu, vieram para as cidades em busca de melhores dias. Nas cidades, encontraram outros pobres, os filhos da escravidão que alforriados legalmente não foram acolhidos no campo dos direitos sociais e das políticas públicas. Sobretudo no período do autoritarismo, as cidades incharam. Os pobres, sem outras alternativas, foram ocupando morros, encostas, baixadas e áreas de risco e de preservação, na busca desesperada pela sobrevivência e para terem “um cantinho seu”. Nas cidades, prevaleceu a mesma lógica da concentração e da exclusão. Tínhamos, ainda, os prefeitos nomeados, as câmaras municipais reduzidas ao papel homologatório de decisões externas, a imprensa censurada e amordaçada, os movimentos sociais e as autênticas lideranças comunitárias perseguidos. As cidades foram apropriadas por interesses particulares ligados a governantes inescrupulosos.
Os desafios urgentes das cidades foram, em parte, considerados, nos últimos tempos, e tivemos avanços, como a criação do Ministério das Cidades e a Lei 11.107, de 6 de abril de 2005, que dispõe sobre a contratação de consórcios públicos. Mas as demandas são maiores e incidem, com maior força, nas regiões metropolitanas e exigem a efetiva aplicação do princípio da função social da propriedade. A desapropriação sobre terrenos que servem à especulação não pode obedecer a lei do mercado ou se equiparar à desapropriação sobre bens usados ou necessários à digna sobrevivência da pessoa e da família.
Experiências democratizantes, como o planejamento e o orçamento participativos, devem ser consolidados e ampliados, para que os serviços públicos cheguem às populações mais empobrecidas e para que seja superado o dualismo cidade legal versus cidade clandestina ou marginal. As regiões metropolitanas e os aglomerados urbanos exigem um novo estatuto jurídico: cidades conturbadas, enfrentando problemas comuns relacionados à violência, moradia, saneamento básico, urbanização de vilas e favelas, transporte coletivo, coleta e destinação do lixo e preservação ambiental não podem mais conviver com a autonomia plena de cada município em detrimento do desenvolvimento regional, do bem comum e da segurança das pessoas. É fundamental a criação de um espaço deliberativo que, respeitando as identidades municipais, estabeleça planos, diretrizes e ações compartilhadas.
O direito de propriedade como valor absoluto que prevalece no Brasil desde os tempos coloniais estendeu-se às cidades. Estas, pela proximidade das pessoas, exigem a implementação legal dos valores da solidariedade, da partilha, da distribuição equânime dos bens e oportunidades. Exigem a aplicação do princípio da socialização de que falava o santo e sempre lembrado papa João XXIII, princípio este alicerçado na convicção de que a paz é fruto da justiça.

* Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome